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por Jusciellen Ketlen Barbosa de França*

Baseado no livro 1984, o referido texto tem como um de seus objetivos demonstrar  parte da força e significado dessa obra escrita durante o século XX, mas que foi indispensável  para a reflexão de toda a humanidade. Assim, a sua análise é feita com o enfoque na construção  da narrativa histórica em um ambiente dotado de autoritarismo e seus reflexos em uma  sociedade adoecida. O escritor Eric Arthur Blair, que utilizou durante muito tempo o pseudônimo George Orwell, aborda temáticas caras de forma singular. Dessa maneira, 1984 trataria de uma distopia supostamente não tão distante da realidade em que o autor vivia, pois  era alicerçada em questões sociais próximas.  

Nesse sentido, o contexto histórico no qual Orwell se encontrava teve uma influência  decisiva para a formação de seu livro, já que o mundo havia acabado de passar por problemas  surpreendentes, justamente com o Totalitarismo. Logo, questões danosas para esse momento, como censura, tentativa de apagamento histórico e formas de controle aparecem em 1984 de modo explícito e bem fundamentado em boa parte da trama. Diante disso, o autor consegue causar  no leitor um sentimento de incômodo e empatia para com os personagens, porque a obra  alimenta o sentimento de reconhecimento e medo do que aconteceu nesse caso na ficção, mas a qualquer momento poderia se tornar real. 

A história se passa no que havia restado da cidade de Londres em 1984 depois de  sucessivas guerras e oferece o personagem principal Winston, no qual vivia em uma situação  medíocre dotada de momentos narrados como desprezíveis. Posto isso, é através de sua vida que o escritor destrincha os acontecimentos mais significativos destacados em sua escrita.  Winston era vigiado durante praticamente todo o tempo pelo que Orwell vai chamar de  “Teletela”, que consegue capitar os seus movimentos de maneira instantânea e até mesmo se  comunicar com o personagem. Além disso, os seus passos fora do ambiente domiciliar são  altamente controlados por vigilâncias do Partido.  

Inicialmente, ao abordar uma afronta de Winston a tudo o que ele passava e seus medos, Orwell traz o que pode ser considerado como um verdadeiro “divisor de águas” em sua obra: a decisão do personagem de escrever um diário. A partir do momento em que ele começa a organizar  (mesmo com dificuldade) suas ideias em um papel, suas inquietações se multiplicam e ocorre  uma certa modificação no teor da obra. Dessa maneira, a simbologia do diário pode trazer  questões essenciais para o debate Histórico, pois agora não apenas o Partido teria uma versão  documental da realidade, Winston também possuía. No entanto, por se tratar de um período de  exceção, não poderia saber até quando. 

Durante muito tempo da Historiografia, principalmente no século XIX, o documento  escrito possuiu um papel decisivo para a construção do conhecimento histórico, isso se deu pela  necessidade de se materializar o que as elites selecionavam como importante. Dessa forma, a  narrativa de Winston consegue despertar um certo sentido no qual iria além de um ato  revolucionário pelo momento que ele passou, poderia ser configurado como um ponto de poder,  possibilidade de ação. Nesse contexto, a conexão entre a análise histórica e a ficção de Orwell  tornam-se surpreendentemente intrínsecas em uma configuração extremamente interessante.  

Ademais, por meio do Ministério da Verdade percebia-se uma movimentação duvidosa  em relação a veracidade das questões paradoxalmente modificadas, já que a todo momento as  notícias e a própria perspectiva histórica eram reconstruídas. O estudo científico não  apresentava importância, pois o Partido desempenhava o papel de formulação desses  acontecimentos conforme as suas necessidades e vontades. Posto isso, o autor consegue falar  sobre essa parte da “adulteração do passado” de maneira atraente, no entanto, cabe a cautela  por se tratar de uma obra ficcional, na qual ele não teria uma formação específica na temática.  

Posteriormente, ao explicar o que seria provável de acontecer com os escritos de  Winston, o Orwell traz mais um trunfo de um regime autoritário, que é a possibilidade de  apagamento real de quem se opõe ao sistema. Assim como toda a forma de resistência seria  confrontada e as pessoas que a organizaram seriam punidas, passava-se em algum momento a  existir uma verdadeira marginalização de quem se opunha ao poder. A vista disso, essas pessoas  viviam com um constante sentimento de retenção e censura, já que as diversas formas de  expressão eram invariavelmente retiradas desses indivíduos, fato no qual chegava a desestruturar o básico de sua singularidade e diversidade.  

Destarte, em consonância com a ideia central de tentativa de uma invisibilidade de toda  a particularidade que o personagem poderia ter além do Partido, o texto A invisibilidade da Experiência, no qual foi escrito por Joan W. Scott, oferece um fator em comum que ratifica as  problemáticas que isso pode causar para a sociedade. Uma vez que ao proporcionar o  apagamento de todo um contexto social e outras perspectivas, surge uma hegemonia quase  incontestável, na qual fortalece o controle e a desigualdade. Nesse sentido, tanto na vida de  Winston (um personagem) como em uma perspectiva real, essa invisibilidade consegue  restringir necessidades básicas de todo ser humano.  

A narrativa do autor faz com que o leitor questione suas certezas e pensamentos  absolutos, pois mostra como as percepções sofrem uma influência direta das experiências nas  quais o formaram. Consequentemente, a partir do momento que o indivíduo é criado sem a  possibilidade de uma análise crítica e com objetivos superficiais, como a adoração invariável ao partido, o que o forma também o agride, na mesma proporção. E o passado não ocuparia um  espaço tão significativo porque ele não era valorizado enquanto fonte, mas como um item no  qual deveria ser aperfeiçoado para manter as massas quietas e bem organizadas.  

Por conseguinte, para além da forma como o passado fora narrado, existiram  modificações também em outros pilares essenciais para o desenvolvimento humano como na  comunicação ou na existência da “novafala”, de acordo com Orwell. Assim, as palavras  deveriam ser reduzidas ao máximo pela suposta falta de necessidade para determinadas  expressões, isso consegue atingir a subjetividade já altamente danificada dessa população.  Todavia, por se tratar de um processo lento, já que precisaria de vários setores para ser colocado  em prática, pode-se considerar que com as adaptações a população foi reduzida em suas formas e até mesmo laços.  

A obra de Orwell em alguns momentos é bastante densa, exatamente porque apesar de  ser uma obra escrita há mais de 50 anos possui uma semelhança absurda com a realidade atual.  Uma vez que oferece análises de problemas sociais nos quais não deixaram de existir e inclusive  foram intensificados como a desigualdade e exploração, pois essa estrutura, assim como as  demais criticadas pelo autor, funciona para manter um poder, independentemente de quem seja. Diante disso, ao utilizar a alienação como forma de manter os cidadãos, no caso atual, e os  “proletas” em relação ao livro, os indivíduos que possuem o poder têm uma grande chance de  reinvenção.  

Nessa perspectiva, a falta de uma base sólida de bem-estar deixa os personagens em  uma posição constante de desconforto na qual pode ser percebida até em suas próprias  descrições. Sendo assim, os meios de entretenimento aparecem como uma forma de  “extravasar” parte das pressões sofridas e neles, geralmente, são utilizados conteúdos voltados  para a violência e fugas da realidade. Um reflexo disso é o constante bombardeio de  informações falsas sobre os acontecimentos encontrados no livro, pois tenta-se manter o imaginário de que o cenário está melhor que antes quando não existem comprovações  acerca disso.  

Consequentemente, o Partido utiliza seu local de poder para criticar o que acontecia  durante o Capitalismo, por exemplo, e consegue um desenvolvimento a partir dessa crítica. No entanto, se vê repetindo as explorações anteriormente muito criticadas. Isso diz muito sobre os  problemas dos sistemas Autoritários e até mesmo Populistas, que demonstram explicitamente  uma necessidade de cuidado quando se trata de propostas extremas que visam a “retirada  temporária de liberdade” da população. Principalmente, quando existe a criação e alimentação de um suposto “mártir”, no qual estaria disposto a se sacrificar para atender ao comando desse  sistema.  

Em contrapartida, outra temática interessante para ser abordada é a maneira na qual mais  uma personagem da trama se comporta diante dos acontecimentos no transcorrer do livro: Júlia, que aparece inicialmente apenas como “figurante”, ganha um espaço especial. Além de seu  romance um tanto quanto inesperado com Winston, a personagem traz um prisma diferente  sobre como as ações do Partido podiam ser interpretadas em gerações distintas e quais impactos  isso teria na formação de cada um deles. Em paralelo, a sua apatia sobre conteúdos políticos  mostra um dos reflexos de uma juventude alienada, porém, o seu ódio pelo Partido apenas por  sua falta de liberdade chega a ser curioso. 

Perante o exposto, Júlia consegue representar como as alterações no passado interferem  na maneira como os indivíduos se comportam, assim como suas prioridades. Em relação a isso,  cabe uma análise de uma frase muito relevante utilizada no próprio livro: “Quem controla o  passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” (ORWELL, 2009, p.  291). Diante do excerto, pode-se avaliar como essas relações de poder interferem na formação  intelectual de toda uma sociedade através de seleções e exclusões, visto que a construção  histórica é estruturada por meio de ações originadas no tempo presente, mesmo com seu objeto  de estudo estando no passado. 

Evidencia-se, portanto, que no transcorrer de toda a obra são encontradas questões  essenciais para a perspectiva histórica, pois causam reflexões relevantes sobre a importância de  sua base científica. Assim, Orwell consegue de maneira competente construir uma obra dotada  de conhecimentos indispensáveis nos quais funcionam tanto para uma valorização da  democracia e liberdade quanto para a preservação da História. Durval Muniz de Albuquerque  em seu texto Fazer defeitos na memória consegue confirmar de forma mais aprofundada  questões excelentes abordadas no livro de Orwell.  

Por meio do trecho: “A História possui a utilidade de produzir o artefato mais complexo  e mais importante da vida social: o ser humano, a subjetividade dos homens” (ALBUQUERQUE, 2012, p. 31), o autor demonstra como a história é essencial. Em  consonância, no decorrer do livro 1984, ela apresenta um papel indispensável na narrativa de  Orwell, já que a sua utilização de maneira equivocada funciona como um dos pilares para a  manutenção do Partido. Por outro lado, em relação a história de Winston, por se tratar de uma  realidade em meio a distopia, deixa de vencer a História, memória e até mesmo o personagem com um fim trágico, porém, já esperado, assim, Orwell finaliza o que viria a ser uma das obras  mais estudadas e mencionadas do século XXI. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

Obra resenhada: 

ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo:  Companhia das letras, 2009.  

Bibliografia: 

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer Defeitos nas Memórias: para que servem  a escrita e o ensino da história?. In: GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice;  REZNIK, Luís; MONTEIRO, Ana Maria (org.). Qual o valor da História hoje?. Rio de Janeiro:  Editora FGV, 2012. 

SCOTT, Joan. A invisibilidade da experiência. Projeto História Cultura e Trabalho, PUC-SP. São Paulo, v. 16, p. 297-327, fev. 1998.

Nascida em Petrolina (PE) Jusciellen França foi criada às margens do Rio São Francisco e carrega consigo os aprendizados que ele a proporcionou desde muito pequena, entre eles: a profundidade nos sentimentos, inquietações e desejo de constante fluidez. Além disso, é historiadora de formação e escritora por teimosia, principalmente, pela necessidade de se colocar no mundo.

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