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Os Cravos

Eu nunca gostei de velórios e sempre acreditei que fosse unânime, mas não é o caso. Há senhoras que saem das suas casas para visitar defuntos e consolar famílias desconhecidas. Questiono-me se existe um grupo no Whatsapp de senhoras e senhores que analisam e combinam qual será o velório frequentado naquele dia.

Seria mórbido se não existisse uma compaixão no ato, que eu jamais terei.

— Meus pêsames! — uma senhora diz.

Eu agradeço, mas não lembrava de tê-la visto antes.

— Eu estou sem palavras… Eu não esperava por isso! — diz um senhor.

Um exagero descabido. Não é necessário mentir em velórios. Meu tio estava com 87 anos e extremamente doente. Todo mundo esperava que ele fosse morrer.

Saio para fumar um cigarro, porque o cheiro das flores me sufoca. Sempre fui aficionado por cheiros; o do cigarro me acalma e me ajuda a pensar, o das flores me enoja e me dá ânsia de vômito. Já estou há uma hora aguardando para enterrar meu tio. O tédio me consome com o atraso do padre. Culpo a minha mãe, enquanto penso em todas as coisas que eu poderia estar fazendo ao invés de estar ali. E tenho todos os motivos para culpá-la.

Antes de falecer ela me fez prometer que eu cuidaria dele. “Ele é a única família que me restou” — disse com aquela voz rouca de quem não levou a sério o câncer (talvez eu padeça da mesma doença. Parece que está no DNA da família). Quem, em sã consciência, negaria uma promessa à mãe em seu leito de morte? A partir daí minha vida se moldou aos caprichos do meu tio, por mais que eu o odiasse. Não faço por ele, faço por ela. Então sim, eu tenho razão em culpá-la, mas odiá-la eu nunca consegui.

Hoje, eu rio das baboseiras que sua devoção à igreja lhe causou. Minha casa foi construída em cima de regras e prisões. Não podia fazer muita coisa, nem falar, nem sentir e nem viver. Nossa vida era controlada pelo olhar dos outros. “O que o padre vai pensar?” ela questionava quando eu dizia que não queria ir à missa de terça-feira.

Ligo para o padre, mas a ligação não completa. Preocupo-me, não nego. A verdade é que eu contei uma mentira para ele. Eu disse que meu tio era cristão e devoto de Nossa Senhora de Guadalupe — foi a santa que lembrei na hora — mas ele era ateu. Um pensamento me aflige: e se Deus castigou o padre porque ele estava a caminho de um velório para benzer um ateu?

Tento ligar novamente, mas é em vão. Nem a fumaça do cigarro me acalma, ainda assim, acendo um novo com a bituca do que estava acabando.

Eu cresci entre dois mundos: o cristianismo da minha mãe e o ateísmo do meu tio. Talvez por isso eu tenha caído no meio: acredito em Deus, mas questiono o pensamento humano que as pessoas têm Dele. O maior medo da minha mãe era que, por ser ateu, meu tio fosse para o inferno. “Eu sei que ele não vai deixar você fazer isso, mas não deixa de dar a unção dos enfermos pra ele.”

Por definição, essa unção é um sacramento que dá ao católico uma graça especial para enfrentar as dificuldades de uma doença grave ou velhice. Uma ponta de esperança. Para minha mãe, morrer sem a unção dos enfermos significava: VAI PRO INFERNO! De acordo com ela, qualquer um poderia dar a unção na hora da morte, não precisava ser uma pessoa especializada. Convenhamos que não há nenhum grande ritual para fazê-lo. E ela sempre me testava. “Se algum dia eu cair dura na sua frente, Mateus”, me perguntou, do nada, enquanto a gente assistia um filme de comédia “o que você vai fazer?” “Chamar a ambulância!” Respondi, não entendendo a obviedade da pergunta. Sem que eu tivesse tempo de fugir, senti o chinelo acertando o meu braço. “Eu estou falando sério”, me repreendeu. “Te deixo morrer?” Questionei, ainda bravo pela surra. Dessa vez, consegui fugir do chinelo. “Você me dá a unção dos enfermos, Mateus. A gente já falou sobre isso.” Nunca terminei de assistir o filme porque ela desligou a TV para rezarmos o terço e pedir perdão.

Rio, enquanto trago a fumaça do cigarro ao lembrar dessa história. Foi meu tio quem esteve ao lado dela quando ela deu seus últimos suspiros. Ela recebeu a unção dos enfermos pelas mãos dele. As mesmas mãos que me abusaram dos 11 aos 13 anos e ninguém nunca soube.

Acalmo-me quando vejo o padre entrando no cemitério. Aflijo-me, quando vejo seu braço enfaixado, pendurado em uma tipoia. O que quer que tenha acontecido com ele, concluo que foi culpa minha.

— Não se preocupe — ele diz em meio ao meu interrogatório. — Foi um descuido na hora de descer as escadas e tive que ir ao hospital. Desculpa pelo atraso.

Ainda que pareça cotidiano, interpreto como punição divina. Quero parar o padre, impedi-lo de cometer o pecado de abençoar um ateu pedófilo, entretanto, era a última parte da promessa que eu fiz. Fiquei entre a culpa e a absolvição. Culpa é sentimento cristão. Talvez faça parte da vida tê-la comigo o tempo todo.

— O seu tio recebeu a unção?

Ao ouvir a pergunta, sou acometido por uma raiva que me domina há anos. Sob a força dela, não me responsabilizo pelas minhas atitudes.

Faço uma breve pausa sem nenhuma intenção de dramatizar o que viria a seguir. É apenas um momento de contemplação, para ter certeza de que eu estava pronto para carregar aquela mentira para o resto da vida.

— Sim, claro. Eu dei a ele a paz que ele precisava.

Ao entrar na capela onde o caixão estava, senti novamente o cheiro das flores. O mesmo cheiro do jardim da casa do meu tio quando eu tinha 11 anos. Nunca esqueci o cheiro dos cravos. Aquela foi a primeira vez que suas mãos encostaram em mim. As mesmas mãos que deram unção à minha mãe. Nunca o perdoarei por tê-la corrompido.

Escolhi os cravos para colocar ao lado do caixão, na esperança de ressignificar aquele cheiro.

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — o padre começa.

— Amém — todos respondem, menos eu.

Nos últimos minutos de vida, meu tio agonizou. Eu estava em pé do lado dele e vi o momento em que o ar lhe faltou. Ele estendeu as mãos em busca das minhas. Eu não me movi.

— Estamos reunidos para rezar pela alma do Sr. Maurício Hermes Silva.

Enquanto meu tio agonizava, eu o observei. Um sofrimento lhe saltou dos olhos, buscando em mim, ajuda para se manter vivo. Ele tentou pegar o celular, mas eu peguei primeiro. Ele aproximou o dedão na sua testa e eu impedi que ele se desse unção. Talvez, na hora da morte, ele tenha desistido de ser ateu. Ou buscasse perdão. Não sei o que passou na mente dele e não me interessa.

Neguei-lhe a unção dos enfermos.

Neguei-lhe socorro.

— Mateus, — diz o padre, me tirando do transe — você gostaria de fazer a leitura?

Nego. Finjo uma emoção qualquer e o padre continua a leitura.

Meu trabalho está feito. De todas as promessas que fiz à minha mãe, a única que eu não cumpri foi lhe dar a unção. Acreditei que estava vingando-a também.

Viro as costas rumo a uma libertação que ainda não tenho certeza se vou encontrar. Acendo um cigarro no caminho, porque o cheiro do cigarro me acalma e me faz pensar.

Renan Amaral é escritor, roteirista, diretor e sócio fundador da Jemastê Filmes. Escreveu e dirigiu diversos curtas e webséries. Publicou de maneira independente na Amazon KDP os ebooks Relatos de um pisciano ansioso partes 01 e 02 e foi vencedor do Terceiro concurso de micro contos da Ipê Amarelo. Atualmente, trabalha no CURTA METRAGEM Os Cravos, contemplado pela Lei Paulo Gustavo, adaptado do conto aqui apresentado.

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