Skip to content

Multiartista brasiliense comenta os processos criativos em torno de seu segundo livro-disco, “O Livro dos Espelhos” (Selo Auroras)

“O livro dos espelhos”, segundo livro-disco da performer, pesquisadora e poeta Marianna Perna (@dasvozespoesia), é um convite a uma reflexão profunda sobre o entrelace entre o Eu e o Outro na descoberta e entendimento da alteridade. Publicada pela Penalux (2023, 136 pág), a obra faz parte do Selo Auroras, projeto dedicado apenas à literatura produzida por mulheres, e tem a quarta capa assinada por Dani Costa Russo, jornalista e escritora que faz a curadoria e a edição dos livros do selo. 

Com um time de peso envolvido na apresentação do projeto ao público, vale destacar que os paratextos foram escritos pela psicanalista e escritora Mariana Lancellotti (orelha), pela escritora e pedagoga Fernanda Pacheco (prefácio) e pelo músico e também escritor Juliano Gauche (posfácio). O livro-disco também conta também com fotos especiais tiradas por Subtil Jéssica e contribuições musicais do músico, produtor e engenheiro de som Eduardo Recife e pelo músico João Sobral.

Natural de Brasília, Marianna vive na capital paulista desde a infância e se faz ativa na cena paulistana como escritora e poeta desde 2015. Também é historiadora, mestre em filosofia, produtora cultural e pós-graduanda em Psicologia Transpessoal. Além disso, é fundadora da Casa Urânia, espaço multiartístico & terapêutico na Vila Pompeia, em São Paulo. 

Confira a entrevista completa com a autora:

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?

Auto-descoberta; alteridade & encontro; reflexão profunda & descontentamento; “quem sou eu, quem é você?” desde o subjetivo até o questionamento civilizatório; o poder de transformação que a poesia e a escrita têm; abandono da civilização falida; morte e renascimento.

Por que escolher esses temas?

Não é que eu os tenha escolhido, foi tão somente a expressão do que estava me atravessando (e  me atravessa) enquanto ser criador e que por necessidade precisava e queria comunicar. O livro acaba sendo também um processo e um percurso para a elaboração e compreensão de tudo o que me move, atravessa, decantando as percepções e sensações, para compor esse espelho multifacetado e caleidoscópico que, no final, se mostra como (tudo) o que somos. 

Mas refletindo agora sobre essa pergunta, do “porquê”, talvez o que tenha me levado à necessidade de escolher falar sobre isso, de expressar, seja uma inquietação frente os tempos que estamos vivendo, tanta morte produzida, tanta falta de escuta, de empatia, tanta dificuldade de aceitar o “radicalmente outro”, tanto discurso de ódio, ignorância, tanta alienação, tanta guerra em tantos níveis. 

É uma provocação e uma angústia frente a esses modos de (não)viver – formas desagregadoras, que são produtoras de morte, de fragmentação do ser. 

Acho que vem de um engajamento radical de transformação dos valores, do mundo, através da arte & da poesia.

O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?

O conceito do livro se iniciou a partir de uma residência artística de dança e performance que realizei em 2018 no CRD (Centro de Referência da Dança no centro de SP, importante local de ocupação e reflexão sobre arte e dança), com a artista Sylvia Aragão. Era uma residência para mulheres, e ficamos alguns meses juntas investigando questões ligadas ao feminino, para criar uma performance a partir de um trabalho que ela já fazia com intervenções na rua. O mote eram espelhos; era um trabalho de reflexão com auto imagem a partir desse objeto. Todos os poemas da “Série dos espelhos”, primeiro capítulo do livro, composto por 13 poemas curtos, foram escritos literalmente olhando para o espelho e me movendo numa sala de ensaio, refletindo sobre o corpo e a existência. Não editei nem modifiquei nada, os poemas estão exatamente como brotaram naquele dia/dias. Escrevi mais outras coisas também que não entraram no livro. E algumas das coisas que escrevi à época tornaram-se “partituras” de movimentos e narrativas que inspiraram e conduziram a história que estávamos contando e investigando juntas. Foi um processo rico e inspirador. 

Depois de finda a experiência, fiquei revisando esses escritos e foi quando veio a intuição de que meu segundo livro seria “O livro dos espelhos”, era o mote tanto de refletir como de reflexão, e a partir daí comecei a reunir outros escritos que já tinha e que gostaria de publicar em um próximo livro. Fui organizando tudo em capítulos e momentos, para criar uma linha narrativa. Daí embarquei numa profunda pesquisa pessoal com o objeto espelho, investigando como ele aparecia na obra de outros poetas, como era retratado. Como o espelho é denso simbolicamente, fui me atentando de camadas que passaram despercebidas anteriormente. Foi, então, uma investigação poética que nasceu pela via do objeto físico, da observação de si, inspirando escritas, textos, a partir da minha subjetividade e que continuou depois pela pesquisa literária, observando o outro, as outras, como isso aparecia em outros lugares/pessoas. A residência findou em dezembro de 2018, então toda a primeira parte de 2019 foi dedicada a continuação do processo; no segundo semestre de 2019 já estava submetendo o livro ao Proac, já tinha ele montado, com as epígrafes, os capítulos e quase todos os textos que estão hoje nele. 

Quando do processo do segundo Proac a que submeti, dentro da reflexão sobre o período que estávamos vivendo, de pandemia, me incomodou que fossem poemas todos pré-pandêmicos, e por isso atualizei, inserindo alguns escritos daquele momento, de a partir de 2020, e escrevendo, por último, um Post-Scriptum que me arrepiou bastante, que costurou todo o processo e me fez entender o porquê de lançar aquilo, naquele momento. Fez muito sentido. Foi bom esperar, veio na hora certa. Vejo O livro dos espelhos também como uma grande crítica-provocação à política de morte que vivenciamos desde o macro ao micro, no nosso cotidiano automatizado bem como nas estruturas econômicas e políticas, nessa frieza e desumanização, na brutalização da vida. Coisas que se intensificaram e escancararam na pandemia, mas que estão presentes no mundo há tanto tempo bem como no Brasil, e talvez piorando desde 2018 ou mesmo um pouco antes, desde o golpe…

Que livros influenciaram diretamente a obra? 

Durante o período em que escrevi esses poemas lembro que lia e relia (pra variar, rs) Hilda Hilst, Orides Fontela e Antonin Artaud. Eu também começava a ter mais contato com a obra de Herberto Helder. Após aprontar todo o livro, montado em capítulos meio que “temáticos”, fui elegendo pequenas epígrafes, para criar um diálogo direto com autoras/autores, porque minha reflexão passava também pela constatação que somos continuidade e continuação do que veio antes, recriações, e que isso também pode ser libertador. Penso que só é aprisionador para o ego, que quer ser tão original e criador, inventor da roda. Eu gosto de dialogar e ser só mais uma dentro do coro dos descontentes, somar minha voz à de tantos e tantas outras que já falavam e sentiam tudo isso. E acredito que cada ser, mesmo nisso, é também único, por mais parecidas que possam ser a obra ou a criação, não existem dois seres humanos iguais. Então para esse momento fui relendo mais autoras e autores que aprecio, a maior parte na extensa relação acima, e também nesse momento me chegou a leitura de Filosofia do zen budismo, de Byung Chul-Han. Sou uma devoradora de seus livros já desde 2016, minha meta é ler todos seus títulos rs, e esse livro caiu como uma luva, por ser uma crítica à sociedade ocidental a partir da filosofia, comparando visões/autores ocidentais com a oriental, mais especificamente do zen-budismo. Em dado momento ele usa literalmente a figura do espelho para tecer essa crítica à nossa sociedade narcísica e não aberta à alteridade, ao radicalmente diferente, porque isso é apavorante. Essa foi uma chave, com essa leitura compreendi o meu próprio processo intuitivo com esses poemas e porquê veio como veio, compreendi até porquê veio o título do livro todo assim que nasceram os primeiros poemas, sabia que se chamaria O livro dos espelhos.

Quais são as suas principais referências como autora?

Tenho muitas! E não posso deixar de citar várias como “principais”, tanto literárias como filosóficas, porque realmente me interesso pela escrita e pela ideia de muitas pessoas, tudo isso me compõe, é inescapável.  Hilda Hilst, Orides Fontela, Walt Whitman, García Lorca, Alejandra Pizarnik, Sylvia Plath, Antonin Artaud, Allen Ginsberg, Fernando Pessoa, Drummond, Borges, Jim Morrison, Patti Smith, Adrienne Rich, Alfonsina Storni, Audre Lorde, Clarice Lispector, Rita Lee, Leminski, Rimbaud, Bob Dylan, Herberto Helder, Walter Benjamin, Byung-Chul Han, Michel Foucault, Alejandro Jodorowsky, Nietzsche, Jung, Ailton Krenak, Franz Kafka, Silvia Federici…

Como é o seu processo criativo? 

A escrita poética para mim gera um estado misto de razão e intuição, de saber exatamente o que está acontecendo e não fazer ideia nenhuma do que é aquilo. Sinto quase algo físico no meu corpo, de que algo quer “sair”, me dá uma espécie de coceira para escrever, algo bem peculiar, difícil de colocar em palavras a sensação.  

Então começo a escrever, no ímpeto daquilo se expressar, buscando as palavras, como se eu soubesse o que é sem saber – um estado distorcido e diferente de consciência. Às vezes quase chego a desistir pois parece que não faço ideia do que seja o que quero escrever, não faz sentido, parece que vou ficar esperando aquilo tomar forma mas de repente vem, e sai exatamente algo que eu sentia que tinha que escrever mas não conhecia ainda, aquilo acaba de nascer mas já me é muito familiar; aquelas palavras, ou imagens criadas, me surpreendem, me causam um profundo espanto. Como se reconhecer em um antigo empoeirado espelho. Você passa alguns minutos ali tentando enxergar o que tem do outro lado, é difícil de entender aquelas formas, mas de repente as imagens adquirem sentido e você percebe que é você ali, você se reconhece de um jeito distorcido – e bonito. 

Para mim, a escrita é muito esse processo de estranhamento – do mundo, de tudo e de si próprio – e ao mesmo tempo re-conhecimento  – se reconhecer um outro, distante, atemporal, e também tão próximo, tão ali, tão acessível. Já tão antigo. Um estado além da dualidade cotidiana, em que estamos sempre oscilando entre passado e futuro, certo ou errado, presença ou ausência. A escrita me traz para um estado além de tudo isso, não por negar esses estados, mas porque os aceita e por isso pode olhar para eles de fora, como se fosse além da fronteira do comum e olhasse para tudo de um jeito mais amplo, ao mesmo tempo acolhedor e sábio.

Pra mim é algo muito louco e maravilhoso conseguir atingir um estado de unicidade com algo, que faz com que palavras brotem como um produto intrínseco da experiência. Não uma representação ou racionalização da experiência, mas sendo a própria dimensão da experiência codificada em palavras. Sabendo, claro, que a experiência viva está muito além das palavras, mas a poesia é uma tentativa de aproximação, de registro e apreensão disso que é muito maior, que é a vida.

Como você definiria seu estilo de escrita?

Penso que definir é (se) limitar. Minha verve de escrita é poética e de busca por liberdade, pela livre expressão do pensar e sentir e vejo isso como o mais importante – esse espaço de respiro e não-definições que a poesia nos permite, de radical sinceridade e acolhimento também. Mas enquanto um ser humano de muitas formas definido pelo espaço-tempo em que vive e por suas experiências de vida, acredito que minha escrita se faz pela confluência do que vivenciei e vivencio, por tudo que já li, em todos os campos, não apenas da poesia… acho que tudo alimenta o que criamos, e também sinto que minha poesia é composta, inescapavelmente, de um olhar radicalmente crítico para a realidade, desgostoso, descrente do mundo, que vem de minha formação como historiadora (com um pé na filosofia) e que, por mais que não me identifique como uma historiadora acadêmica, acredito que ser historiadora e mesmo filósofa (e agora estudante de Psicologia) não é necessariamente uma profissão pela qual você é remunerada, senão um certo modo de olhar para o mundo; são óticas, e isso segue te acompanhando na vida, vai mudando de jeito e expressão, claro, não é algo engessado, congelado, mas te acompanha, é uma vocação também.

Como a música se relaciona com seu processo criativo de escrita? Como surge a ideia de um livro-disco?

A música sempre esteve presente comigo como a primeira linguagem artística por que me interessei, bem nova, e que foi a porta de entrada, inclusive, para a poesia…comecei a ler poesia através de letras de músicas e de compositores que citavam poetas e assim passei a ir atrás de descobrir a poesia em si e me tornar leitura. As conexões entre essas formas são muito evidentes, a poesia antiga sempre foi expressada pela oralidade e através de música, acompanhamento musical e em sua própria construção: as rimas e a métrica são signos do ritmo, o que denota sua musicalidade inata, sua marca de origem…E isso sempre me atraiu muito, não apenas a palavra poética em si – ela também – mas também sua capacidade de se expandir em outras linguagens que hoje percebemos como distintas, mas que no fundo estão mais próximas do que desconfiamos. E meu processo com a poesia sempre tem sido, além da dedicação ao ofício poético, digamos assim, da palavra, da manufatura do verso, também o desvelar do estado poético que denuncia tudo em conexão – todas as formas como portais para um estado ampliado de contemplação poética. Acho que é isso que me interessa de fato, e a música é um desses caminhos, mas há muitos outros, que tenho explorado também, e o faço por uma necessidade, quase, não como uma determinação exterior, mas como algo natural que se revela a partir da palavra poética – brotam imagens, sensações, ritmo, musicalidade, referências, lembranças. Algo bastante da ordem do sinestésico. E a dedicação a este objeto livro-disco, que agora é meu segundo lançado, é o resultado dessa vontade de registrar essa poesia não apenas em palavra impressa no livro, mas em som vivo, musicalidade inata, estado poético contemplativo que pode inspirar a apreciação poética para algo bem além da leitura no papel, engajando vários sentidos sensoriais da/do leitora/leitora ao mesmo tempo. 

Você escreve desde quando? Como começou a escrever?

Me considero uma escritora de poesia desde 2013, apesar de ter alguns escritos poéticos que remontam a 2010/2011, e mesmo de antes, da adolescência, porém acredito que foi neste ano de 2013 que “entendi” que “era poeta” – entendi o que isso significava (para mim, antes de tudo) e que exigiria um comprometimento de vida. Também foi o ano que me formei bacharel em História, então de certa forma me “libertei” de algo que me incomodava, que foi um certo lugar limitante (para mim) da escrita, desde 2008, quando entrei na faculdade, e vinha aprendendo essa narrativa objetiva, técnica e acadêmica, a escrita historiográfica. E não é que não goste, aprecie ou compreenda seu lugar e valor, mas em meu ímpeto expansivo na escrita, não encontrava lugar para expressar outras possibilidades de meu ser, e foi na poesia que o encontrei. Primeiro lendo vários poetas, e depois me arriscando em versos. Como escrevi em um outro texto: “Vejo a base cognitiva do ofício do historiador e do escritor como basicamente a mesma: leitura, interpretação e escrita. Porém, a diferença abissal entre elas é o lugar (ou proporção) da imaginação e da liberdade.” E me lembro na adolescência de gostar de escrever contos, tinha muita imaginação e gostava de escrever coisas em prosa, no final do Fundamental e no Ensino Médio adorava ler, adorava as aulas de redação, gramática e literatura, me dava gosto escrever e percorrer todo esse universo. Escolhi cursar História porque o “conteúdo” da escrita – o olhar pro mundo atual e entender de onde vem, entender os processos, de onde as “coisas vêm” foi o que mais me chamou, mas também vejo como um ímpeto de escrita – escrever a história (as histórias) trata-se, também, de um ofício da palavra.

Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

De escrita no momento não tenho nenhum, estou bem focada neste livro ainda. Focada em divulgar, circular com ele, e agora com a parte musical chegando nas plataformas musicais! A trilha completa do disco é longa, tem 68 minutos, por isso para as plataformas musicais, junto ao Selo Lyra Noise (da produtora e poeta Cris Rangel), dividi em 3 EPS, misturando um pouco a ordem das faixas originais, para propor um caminho de escuta poética que funcione como obra musical e que também possa ser uma forma das pessoas chegarem no livro. Sinto que funciona bem como apreciação musical e estou feliz de disponibilizar essa trilha também nas plataformas para as pessoas poderem conhecer. Então diria que um dos projetos agora de 2023 é focar nesses fonogramas, para divulgar mais o “fato musical”, do livro, enfocar a proposta dupla e híbrida de música & poesia, de spoken word, divulgar e mostrar isso também, mostrar que há uma trilha e que inclusive toco nela (piano e sintetizadores) e recito os poemas, e que as pessoas podem até ouvir isso na internet antes de adquirirem o livro!

Conheça a com.tato

Conheça a com.tato

Pular para o conteúdo