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Era início das férias de verão, decidi passá-las na casa dos meus tios que moram no interior. Apesar de não terem vindo de uma família abastada, eram financeiramente bem-sucedidos, por meio dos estudos, construíram uma carreira de sucesso e acenderam socialmente. Da minha geração familiar, sempre fui a nerd, algo bem diferente dos meus pais e demais parentes, por causa disso, desenvolvi um vínculo muito especial com meus tios, pois eles eram mais parecidos comigo e acabavam sendo uma inspiração para mim.

Ao chegar em sua casa, fui recebida com muito amor e carinho, obviamente eles me passaram algumas regras. Em sua ausência, deveria dar de comer aos cachorros, meu quarto deveria estar sempre limpo e organizado, e o mais importante de tudo, deveria estar em casa antes de anoitecer. Essa última demanda foi um pouco chata para mim, porque apesar de ser adolescente, meus pais deixavam que eu ficasse fora até tarde, mas não havia muito o que fazer, então apenas aceitei.

Os dias foram passando, cada dia fui ficando mais maravilhada com aquele lugar e o estilo de vida que eles levavam, festas suntuosas com a presença de convidados importantes eram constantes, comidas e bebidas caras faziam parte da rotina da casa, e todo tipo de atividades incríveis para fazermos juntos. Eles tinham uma empregada chamada Sílvia, uma mulher muito doce e prestativa, mas extremamente castigada pelo tempo. Algumas vezes ela trazia seu filho, Romeu, pois meus tios apadrinharam o menino, pagavam sua escola, atividades extracurriculares e buscavam proporcionar momentos mágicos para ele, tendo em vista as dificuldades que os dois passavam.

Ele era um menino bonito, alto, cabelos negros que contrastavam com seus olhos castanhos e pele esbranquiçada. Mas meus sentimentos em relação a ele eram um pouco ambíguos, pois ele era um garoto extremamente fechado, não era de falar muito, portanto, foi difícil estabelecer uma relação mais próxima. Contudo, num dia em que meus tios foram jantar a dois, ficamos sozinhos. Sílvia estava ocupada demais, indo para lá e para cá resolvendo coisas da casa, aproveitei esse momento para tentar começar um diálogo. Romeu estava sentado numa poltrona lendo de maneira obstinada, mas decidi ir em frente com meu objetivo.

— Você gosta bastante de ler, não é?

Ele levantou os olhos devagar, deu um meio sorriso e colocou o livro aberto no colo.

— Por que você acha isso? — Disse fixando os olhos nos meus.

— Não me lembro de um dia que não o tenha visto com um livro nas mãos. — Dei uma risadinha para quebrar o gelo.

— Leio quando preciso organizar o caos dentro da minha cabeça, principalmente em situações em que fico desconcertado.

— Por que você está desconcertado?

Romeu deu um sorriso amarelo.

— Sua presença.

Meu corpo estremeceu, como se tivesse levado uma pequena descarga elétrica que perpassou todo meu corpo. Ele voltou a ler, Sílvia chegou com uma tábua de frios para comermos enquanto esperávamos meus tios. Não falamos mais naquele dia. Depois disso, não conseguia mais parar de pensar naquilo, conheci vários garotos, mas nenhum me causou tanto interesse quanto ele. Havia algo hipnotizante em sua presença, ou talvez só seja minha nova percepção devido ao que ele disse. Dali em diante, buscava criar situações em que pudéssemos ficar sozinhos, na maioria do tempo fracassava, mas quando meus planos davam certo, valia a pena. Uma tensão foi se formando entre nós, as conversas eram permeadas por risadas e provocações, simplesmente delicioso.

Um dia após um almoço, resolvemos caminhar pelo jardim na parte posterior da casa. Jardim era uma forma modesta de dizer, parecia mais um bosque do que qualquer coisa. Eu andava enquanto ele me seguia vagarosamente por entre as árvores, eu gostava disso, gostava quando ele me observava em silêncio como se quisesse consumir cada parte de mim. Em um dado momento, olhei para trás e gritei com uma voz infantil:

— Você não me pega!

Corri como se minha vida dependesse disso, depois de alguns minutos parei para respirar, percebi desapontada que aparentemente ele não havia me seguido, quando ia voltar ao seu encontro, algo me puxou para atrás de uma árvore. Era Romeu, ele me encostou contra ela e ficou olhando para mim enquanto segurava meus braços. Nos olhamos por segundos que pareciam intermináveis, até que ele se inclinou e me beijou. Foi o beijo mais doce que já recebi, era como comer um favo de mel num dia frio de outono. Quando parou, largou meus braços e voltou em direção à casa, precisei de uns minutos antes de fazer o mesmo.

O fim das férias estava chegando, Romeu nunca mais apareceu depois daquilo, fiquei triste, mas sabia que era melhor assim, vivíamos em cidades diferentes e provavelmente não daria certo, porém, não quer dizer que não fiquei desaponta por tomar aquele belo fora. Depois de uma noite de jogos com meus tios, decidi me despedir, ir para a cama, coloquei minha camisola e me deitei. Uns 30 minutos depois, ouvi um barulho na janela. Quando fui ver do que se tratava, vi que Romeu estava embaixo da janela com um punhado de pedrinhas na mão, ele fez sinal para eu abrir. Hesitei por um momento, mas não resisti e abri.

— Você pode descer, Camila?

— Não sei, pensei que não queria mais nada comigo. — Disse fazendo careta.

— Por favor, prometo que vai valer a pena.

Saí da casa silenciosamente, com camisola mesmo. Romeu esperava por mim na porta que levava à parte posterior da casa.

— Vamos dar uma caminhada. — Disse.

Comecei a caminhar, era uma noite relativamente agradável, estrelada como nunca havia visto antes, tudo parecia muito mágico, parecia estar num daqueles filmes românticos onde os protagonistas precisam se encontrar às escondidas. Novamente, ele andava atrás de mim, mas dessa vez ele começou a falar.

— Sabe, Camila, admito que desde o início fiquei de olho em você. Você é uma garota linda, estimulante e cheia de vida. Você fez minha vida ser mais interessante.

Senti um frio na barriga, amava a maneira como me descrevia.

— Mas, sabe, acho que nosso relacionamento não vai muito para frente. Você mora em outra cidade, sua família é bem de vida e provavelmente você achará alguém bem melhor que eu para sair.

Me virei para desmenti-lo, porém percebi que ele me olhava de maneira estranha. Quase como se tivesse dito uma verdade amarga demais para digerir. Paralisei.

— Mas veja, não estou disposto a renunciar a você. Não perderei a melhor coisa da minha vida. — Disse se aproximando. 

Por algum motivo, senti medo.

— Romeu, acho melhor eu ir para casa.

Ele continuou andando em minha direção, quando chegou perto de mim, deu-me um abraço.

— Sinto muito. — Falou ao pé do meu ouvido.

Senti uma dor nas costas, como se algo afiado tivesse atingido minha espinha, o afastei. Ao colocar a mão no local, senti um líquido quente que parecia ensopar minha camisola e, ao olhar minha mão, percebi ser sangue. Simplesmente caí. Antes mesmo que pudesse gritar de dor, ele subiu em cima de mim e começou a apertar o meu pescoço. Não conseguia respirar.

— Já vai acabar, Camila. Logo a dor vai passar e será como se nada tivesse acontecido.

Ele parecia sereno, focado em seu objetivo. Lembro que meus momentos finais foram de puro horror e agonia, mas como ele prometeu, a dor parou, nunca mais senti nada. Não preciso dizer as coisas sujas que ele fez com meu corpo, porém, essa era a última visão que gostaria de ter de mim mesma. Agora eu fazia parte daquela floresta e dali em diante meu espírito nunca mais teria paz. E meus tios, que estavam tão preocupados com os perigos externos da noite, não perceberam que o verdadeiro perigo estava dentro de casa.     

Adam Collin Silva Da Costa é estudante de Biblioteconomia e escritor nas horas vagas. Criou o podcast (Trans)itando, onde fala um pouco da sua experiência enquanto uma pessoa trans e feminista.

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