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Homero acordou com a dor aguda que lhe rasgou as costas do coração aos rins. O mal-estar logo se esvaiu feito coisa de sonho, e ele se sentou na cama. A escuridão da madrugada era diluída pela luz dos postes que penetrava pelos vãos da veneziana quebrada para a qual há muito prometia conserto. Ao girar o tronco ligeiramente, percebeu que sua mulher não estava na cama. Em seu lugar apenas um livro atirado sobre o travesseiro. Depois de imaginá-la sentada no canto mais escuro da sala agarrada a uma caneca de leite morno, Homero tornou a deitar e, como se desprovido da carne e dos ossos, escoou sono adentro.

Duas horas mais tarde, o relógio tocou e ele se ergueu dando início ao ritual metódico que o levaria ao trabalho. Ao atravessar a sala de estar, no entanto, não enxergou a esposa. Acendeu a luz. Espiou no escritório, na cozinha, na área de serviço e no hall de entrada. A bolsa dela ainda estava pendurada no cabideiro e as chaves reluziam no claviculário. Abriu a porta do quarto dos filhos e ligou a luz. Não havia ninguém ali. Deu dois passos para trás e chamou por eles no corredor. Atentou para uma resposta no silêncio, mas ouviu apenas o som dos grilos no jardim. Sem saber ao certo no que pensar nem em como pensar, Homero começou a abrir os guarda-roupas e, ao constatar que todos os pertences da esposa e dos filhos ainda estavam ali, aninhou-se na ideia fria de que teriam pousado na casa de sua sogra. Tentou um toque para lá, mas não teve resposta. Tentou ligar para o celular da esposa e o aparelho vibrou sobre o aparador. Resmungou enquanto vestia o casaco e deixou a casa. Na porta, notou que não tinha tomado café. Lembrou-se das torradas, do ovo cozido e da fatia de mamão que desde sempre fizeram parte de sua manhã, mas a lembrança não veio acompanhada do gosto e nem da saliva. Passou a chave na porta e se foi.

Ao atravessar a rua, inquietou-se com um livro antigo de lombada puída atirado na sarjeta. Se fosse sua mulher, pensou, teria recolhido feito um cachorro doente e levado para casa. Olhou para os lados, encolheu-se dentro do casaco e prosseguiu. Atravessou o bairro inteiro caminhando de encontro ao vento e intrigou-se com a ausência dos estranhos que rotineiramente cruzavam por ele naquela hora.

Ao chegar à empresa, deparou-se com as portas de vidro fechadas. A sensação de já ter vivido aquilo antes fluiu como água gelada nas veias. Puxou o telefone e conferiu a hora e o dia. Estava ligeiramente adiantado. Trocou alguns passos sem sair do lugar e, em seguida, ligou para um colega que costumava ser o primeiro a chegar. Ninguém atendeu. Tentou ligar para a esposa novamente e nada. Enquanto o vento desgrenhava seus cabelos, fez a volta em torno do próprio corpo. Parou e, com certo grau de espanto, percebeu outro livro em pé no lugar em que deveria estar o guarda da empresa. Saiu de costas e resvalou no meio fio. Caminhou meio de lado, alternando passos ora lentos ora rápidos e entrou no bar da esquina que permanecia aberto 24 horas. Estava vazio. Uma música antiga embriagava o ambiente de tristeza. Ele deu um bom-dia em voz alta na esperança de que o dono, no seu mau humor habitual, deixasse a cozinha a esfregar as mãos no avental ensebado e viesse lhe indagar o que queria. Mas os segundos arrastaram suas correntes e ninguém respondeu. Ao se apoiar no balcão, Homero percebeu outro livro junto a um copo cheio de uísque. Grossas pedras de gelo boiavam na superfície dourada do líquido. Virou com cuidado, e sua pálpebra tremeu ao perceber mais outro livro sobre a mesa do fundo onde uma xícara de café ainda emanava vapor. Arrastou os olhos pelo botequim. Os espelhos antigos das paredes davam a sensação de infinitude ao lugar. As amplas vitrines, no entanto, ofereciam a impressão de se estar no interior de um aquário sem água. Na última mesa do salão, mais um livro de capa vermelha sob um caneco de chope. Homero, então, passou a mão no uísque e entornou. O líquido escorreu como lava gelada pela garganta. Com dificuldade de controlar o movimento dos próprios dedos, abriu o volume do balcão e começou a folhear. Logo o coração também pegava fogo ao se deparar com a história do dono do bar impressa em fonte tipo script. Ali estava toda a vida do homem. Tudo que há muito fazia parte do imaginário coletivo de seus clientes mais fiéis, incluindo as artimanhas que utilizava para adulterar os destilados e para reciclar as sobras. A história terminava sem ponto com o dono do bar cansado, escorado no balcão, se dando ao luxo de bebericar um uísque antes de sua esposa chegar. Homero deixou o copo e saiu tropeçando em pensamentos que não faziam sentido e, se faziam sentido, não eram os que gostaria de compreender. Ao ver outro livro revirado pelo vento na parada de ônibus, cruzou a rua para o lado oposto. No meio da quadra, gritou na esperança de ouvir alguma resposta. Tocou a campainha da primeira casa com luz acesa, mas ninguém veio à porta. Tentou outra série de ligações para a esposa e para alguns contatos em sua agenda até que o aparelho, feito coisa viva, escapuliu de suas mãos e caiu no interior do bueiro. Esbravejou, chutou um tonel de lixo e tomou o caminho de volta para casa. O sol dourava a ponta dos prédios enquanto o vento espalhava folhas avulsas pelas calçadas. Ao entrar, Homero foi direto para o quarto das crianças. Retirou as cobertas e caiu sentado na cama. No lugar dos filhos, livros infantis. Abriu com cuidado um deles, e lá estava toda a pequena vida do caçula, cada traquinagem, cada proeza, cada vez que o menino chorou, cada vez que gargalhou e cada vez que ficou triste ao ouvir um não de sua boca. A breve história se interrompia num sonho em que sobrevoava a Terra do Nunca. Conferiu então o livro do mais velho e se surpreendeu ao saber que, naquele dia, ele tinha dado seu primeiro beijo. Beijo que se repetia incessantemente no último sonho. Segurou os dois junto ao peito e retornou para o quarto. Deitou-os em sua cama e, com as duas mãos, pegou o livro da esposa. O perfume das folhas lhe trouxe lembranças de sua lua de mel. Passou a mão sobre a lombada como há muito não acariciava o rosto dela e, em seguida, ameaçou abrir. Sua curiosidade, no entanto, subitamente transformou-se em medo e ele desistiu. Beijou a capa e a encostou no rosto. Depois se agarrou aos três livros e se deitou. Quando todo o frio do mundo descia sobre seu corpo, Homero se encolheu e, nesse instante, percebeu algo roçando suas costas. No seu lado da cama, havia outro volume. Um livro maltratado que exibia um corte no couro da capa dura. Hesitante, ele o pegou. Abriu e começou a ler. Reconheceu-se nas primeiras lembranças de sua infância. Era o seu livro. Depois da adolescência, se deparou com uma sucessão monótona de dias que o fizera pular alguns parágrafos e capítulos. À medida que as páginas se amontoavam, no entanto, percebeu que o livro parecia contar a história de outra pessoa. Não fossem os detalhes que jamais tinha compartilhado, o restante poderia até entrar no conceito de mera coincidência. Mesmo assim, Homero estremeceu mais duas vezes. A primeira quando leu a respeito de seu insondável encontro com a futura mulher no banheiro fétido do Bar do Bosta numa madrugada de segunda-feira e, a segunda, quando encontrou narrado de forma crua, com precisão de hora e local, a única vez que pensou em tirar a própria vida. Como se pudesse apagar aquela imagem tosca da memória, folhou até chegar à última página, a página daquele dia. Ao contrário dos outros, o seu livro terminava com um ponto final e dizia que, naquela madrugada de lua minguante, a principal artéria de seu corpo tinha rompido durante o sono. A lembrança da dor tornou a lhe rasgar o corpo. Fechou e se agarrou aos livros da família. Tornou a deitar e se encolheu alimentando a última esperança que lhe restava: o frágil e insustentável anseio de que ainda estivesse dormindo. Apagou a luz do abajur e, sentindo a claridade do dia nas pálpebras cerradas, apertou os olhos com força e jurou pela última vez consertar a veneziana estragada assim que conseguisse acordar.

Alexandre Alderete Alves é médico cardiologista e escritor. Cursa a pós-graduação de Escrita Criativa do NESPE

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