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Dia 01.

Troquei a foto sobre o mantel por outra. Tirei a horrenda imagem de seus pais e agora, enquanto assisto à TV, de canto de olho, sei que quem está ali são Glória e Tarcísio. Levei horas pra colar tudo certinho. Ele parece não ter notado.

Dia 05.

Intervi em nossa foto de casamento que fica no corredor. Imprimi uma cópia e fiz uma colagem: sutis chifres sob os cabelos dele, gotículas vermelhas no meu buquê. Os dentes em meu sorriso são chiclete. Ele passa pela foto várias vezes, nem olha para o quadro.

Dia 11.

As meias agora estão do lado direito da gaveta; as cuecas, do esquerdo. As gravatas no lugar dos lenços, e vice-versa. Ele olha de um lado para outro, então olha para mim. Finjo que não vejo, sigo com os olhos no livro, ele não diz nada.

Dia 17.

O pão do café da manhã é integral. Coloquei todas as fatias dentro da embalagem do pão de forma branco que ele ama, uma por uma, amarrei o arame com perfeição. Ele olha feio quando sirvo o prato, pega a embalagem pra ver. Pergunto se tem algo errado, diz que o pão parece escuro. “É mesmo”, respondo, e passo margarina na minha fatia como se nada.

Dia 24.

Troquei os travesseiros. Não comprei novos, porque ele veria na fatura do cartão. Apenas passei o meu para o lado dele, que até agora não disse nada, mesmo que viva dizendo que não consegue dormir sem ele.

Dia 37.

Mudei a marca do iogurte. E do leite. Esvaziei todas as lixeiras ontem antes que ele voltasse do trabalho, coloquei os produtos novos na geladeira. Ele olha feio pra embalagem e diz que comprei errado. Faço uma cara confusa, “como assim?”, pergunto. Responde que eu sei que ele só gosta do Vigor. Coloco mais confusão ainda na cara e digo que não, que sempre pediu Paulista. Ele olha de mim para a embalagem e de volta para mim. Faço cara de preocupada e pergunto se está tudo bem. Ele diz que sim, remove a tampinha e a lambe, sem certeza.

Dia 42.

Mudei a ordem de todos os sapatos na sapateira. Os tênis na fileira de cima, ao lado das chinelas, os sapatênis na segunda fileira, os sapatos sociais na última, mais baixa. Ele grita meu nome, vou até ele, pergunto o que houve em tom consternado. Me acusa de ter feito o que fiz; diz também que suas gavetas estão todas diferentes, que o iogurte não é mais o mesmo. Eu lacrimejo e levo uma mão ao peito, consigo até que o lábio inferior trema levemente. Pergunto se ele está falando sério e digo que estou mesmo ficando preocupada. Ele passa a mão pelos cabelos e diz que está cansado, deve ser isso.

Dia 57.

Durante o dia, instalei o discreto oratório de Nossa Senhora Aparecida na mesinha de canto, onde ficam alguns livros, nossa caderneta de contas, o estojo dos meus óculos. Também coloquei no pescoço a correntinha de prata com o crucifixo. Consegui tudo baratinho num bazar da igreja, faz tempo, e deixei guardados para a hora certa.

Ouço ele sair do banho e então, silêncio. Espero alguns instantes e vou até o quarto, ele está de joelhos diante do oratório, vestindo apenas cuecas, e eu pergunto se hoje ele prefere rezar antes do jantar. Ele se vira para mim, seu rosto contorcido como se algo doesse muito, os olhos vermelhos. Ainda ajoelhado, vira o corpo para o meu, abraça minhas coxas, encosta a cabeça no meu ventre, começa a chorar, murmurando que acha que está ficando louco. Eu acarinho seus cabelos e digo que vai ficar tudo bem.

Taty Guedes é tradutora, revisora e escrevedora. Apaixonada por literatura, filmes, séries, idiomas, yoga. Nascida em São Paulo, já morou na Irlanda e nos EUA, e hoje vive em Porto Alegre com seu filho, William, e cinco felinos.

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