Algumas palavras soltas a fazer sentido. A frase toda incompleta de significado. Na fala entendia quase tudo. A escrita era difícil. Nem na língua oficial de seu país a escrita fazia muito sentido. A língua do povo dançava nos batuques do tambor e da garganta. O grito do fundo era oral e não escrito. Impuseram uma outra língua, mais esquisita. Impuseram a escrita. Qual a relação entre o que se fala e o que se escreve? Nunca entendeu. O cartaz falava sobre emprego, acho que entendi agora, emploi, eu sei o que é. As línguas dos brancos se parecem um pouco, o português parece um pouco o français. O estômago roncou.
Tá na hora de voltar embora, tá na hora de voltar embora, onde já se viu essa gente, esses pretos todos aqui na nossa cidade.
Uma velha gesticulando na rua. Os dentes amarelos, um guarda-chuva na mão esquerda. Digby quase não a viu, perdido na tentativa de compreensão do cartaz colado à vitrine de uma agência de empregos. Grangou, grangou, é preciso impedir que volte a comer terra, como os biscoitos depois da catástrofe, Grangou, é o que mais temo. La faim.
Tão é pegando o nosso emprego, essa gente vadia e preta que vem lá daquele lugar. Não tem o que comer lá na África, seu haitiano?
Gritos, desesperos, pedidos de socorro. Uma hecatombe. Digby caminhava entre os escombros. A mãe, faxineira no palácio nacional, estaria bem? E o irmão enfermeiro, onde estaria? A cidade não tinha nada de realeza. Porto-Príncipe estava devastada depois do terremoto. Porto-Príncipe nasceu devastada. Digby se sentia o príncipe dos mortos, esquecido pela morte quando ele também deveria ter sido ceifado. Os corpos dos seus já deveriam, nesse momento, estar em valas comuns.
Tudo gente vagabunda, no fundo isso é um ladrão. Tinha que pôr um presidente temente a Deus pra ele mandar bala em todo mundo. Bíblia e bala é a solução.
Vinte dias em um posto de gasolina. Uma vida de príncipe, mamãe, se você pudesse ver. Tomava banho e dormia nos fundos. Como gratidão fazia uma ronda noturna. A determinação e a competência não foram suficientes. As contas feitas de cabeça, os vidros lavados em tempo recorde, o calibramento perfeito dos pneus. Mas nada disso adiantou. Falar a língua era mais importante para o patrão. Gestos não falam com madames. Esse português é difícil, mãe.
Pagar salário ainda pra essa gente? Tinha que malemá dar comida. Preto não precisa de muita coisa.
Pòtoprens. Trezentos mil. Longe da alegria com licor de coco ou das festas de família com Tissot e Acra com repolho. O estômago roncou. Sequer uma joumou para lhe matar a fome. Se pudesse beberia todo o rum já produzido no país de origem, para fazer a realidade menos densa, menos dolorida, menos saudosa. Saudade. Essa palavra em português ele compreendia, tinha grande significado. Entrou nele como uma flecha. Saudade do Haiti, saudade do que não existia mais. Pòtoprens não passava de uma fumaça.
Sul do Brasil é de gente descente, temente a Deus, trabalhadora. Esse mundo tá perdido com essas porcarias que vêm pra cá.
Sem que ele percebesse, na mesma rua, mas na calçada oposta, um homem vinha em sua direção. Usava chapéu branco, terno preto, óculos escuros e algodão tampando as narinas. Caminhava como se levitasse. Ninguém o via. Um cadáver andante/flutuante que caminhava recitando versos em créole. Baron Samedi vinha por Digby. Baron Samedi, mágico e sábio poderoso já sabia o que lhe ocorreria.
Vagabundo, safado, volta pro seu lugar. Deus vai te castigar, seu preto desfalecido, filho da puta.
Mesmo com as guarda-chuvadas não estava entendendo o que se passava ao seu redor. Então aqueles gritos e palavras que pareciam ofensivas eram para ele? Eu só estava aqui pensando na minha família, na minha cidade, enquanto tentava entender o cartaz. Ouviu outros gritos: gente que acudia? As pancadas foram se tornando mais fortes. Digby, com fome de uma semana, deixou-se cair sem reação. As guarda-chuvadas se transformaram em chutes, que vinham de todas as direções. Cada vez mais fraco, invocou Papa Legba para falar com os mortos. Papa Legba, a voz de Deus, ele queria atravessar o portal. Baron Samedi sorriu. Não valia mais a pena ficar ali mesmo. Ao menos aqueles chutes o levariam para perto de sua mãe. Perdendo os sentidos, sonhou com danças e com uma mesa cheia. Seus irmãos dançavam a Kompa. Estavam bêbados e felizes. Sua mãe com um prato quente nas mãos, sorrindo, lhe chamava. Akeyi, meu filho, seja bem-vindo.
Luigi Ricciardi é o nome artístico de Luis Claudio Ferreira Silva. Formato em Letras, o escritor, professor e tradutor mora em Londrina. Seus livros mais recentes são ” Os passos vermelhos de John: ou a invenção do tempo” (Penalux, 2020 – Romance), e “O descobrimento do Brasil” (Patuá, 2023 – Contos) O escritor mantém a Acrópole Revisitada, canal literário no YouTube.