Beethoven nasceu com muitos nomes. O primeiro deles, Thraupis Ornata, é quase desconhecido; o povo mesmo, na sua língua de nomear, elegeu para ele outras palavras: sanhaçu-de-encontro-amarelo ou sanhaçu-da-serra ou, o mais bonito e solene, sanhaçu-rei. Foi um ninho tecido a dois bicos, cravado na forquilha de um alto galho de embaúba, numa densa capoeira da Serra do Quebra Cangalha, que lhe serviu de berço. Veio à luz no décimo segundo dia de incubação, sem o privilégio dos primogênitos, sendo o segundo a romper a casca da vida numa ninhada de três ovos. Os pais o alimentaram por dezoito dias, quando enfim decidiu, numa tarde de ventos amenos, com a coragem posta nas asas curtas, e antes mesmo dos dois irmãos, lançar-se ao primeiro voo, desabando no abismo das matas, indo parar na galhada baixa de um manacá-da-serra solitário em meio ao campo. Dali não parou de voar mais, ainda jovem, ainda coberto por uma plumagem acinzentada e monótona, em busca de comida e amplidões.
Aos quatro meses, passarinhando em bando com a família, já quase todo pintado de azul intenso com nuances de amarelo nas asas, deu de pousar numa clareira aberta num grotão de mato, e avistou, no furdunço de outras asas, a deliciosa miragem de um mamão papaia cortado em fatia grossa, sobre o qual se erguia, inclinado, um pequeno telhado de quatro águas forjado em gravetos.
Em voos curtos e aos pulos, foram saciar a fome de seus bicos na carne doce da fruta, e Beethoven não teve tempo sequer de perceber o telhado de gravetos caindo em cima dele, aprisionando-o junto à mãe e dois outros pássaros, um melro e um canário-da-terra. Capturados na arapuca, Beethoven conheceu pela primeira vez o pânico de se ver preso às mãos do homem, o corpo frágil e mínimo apertado pelos muitos dedos do homem, os olhinhos estarrecidos de assombro diante dos olhos grandes e brilhosos do homem, este bicho de estranhos membros e força descomunal.
Agora cativos, os quatro pássaros foram postos separadamente em minúsculas gaiolas e levados à cidade mais próxima, onde viviam os caçadores. Uma semana depois, Beethoven foi definitivamente apartado da mãe e vendido a outro homem, que morava em outra cidade. Este homem, que o havia comprado com o intuito de dá-lo de presente a um cunhado, levou Beethoven ainda mais longe, para outra cidade, afastando-o de vez da família e da mata natal.
Transferiram Beethoven para uma gaiola maior, embrulharam-na num papel de presente cujas imagens figuravam gaivotas voando em liberdade e o deram ao aniversariante, o cunhado do homem, com votos de felicidade, saúde e paz. Beethoven foi de longe o presente que mais agradou e, ainda durante a festa, ganhou na parede da sala o seu lugar de morada, ao lado de outros pássaros engaiolados. O aniversariante era um passarinheiro velho, aposentado e viúvo, homem bom e ordeiro, no que podem os homens serem bons e ordeiros. As únicas felicidades de sua vida eram os pássaros e a música clássica. Gastava os dias a cuidar dos bichinhos alados e a ouvir sinfonias e árias.
Beethoven atravessou assustadiço e desconfiado os primeiros dias do seu cativeiro. Agitava-se muito a cada aproximação do homem, saltando desesperado de poleiro em poleiro, chocando-se por vezes contra o gradil da gaiola por não saber ainda como domar a afobação de suas asas, habituadas aos ilimitados espaços da floresta. Aos poucos, por observação e experiência, compreendeu que sua vida não estava em risco, que de certa forma podia considerar-se até mesmo seguro. O homem jamais lhe faria mal algum, pelo contrário, cuidava deles com esmero e carinho, dando-lhes de comer e beber diariamente.
Compreendeu também, por intuição e consequência, que sua vida jamais seria outra, que passaria o resto de seus dias ali, trancafiado e alimentado, saltando de poleiro em poleiro, debicando as frutas e descascando o alpiste que lhe davam. Compreendeu que jamais tornaria a sobrevoar a amplidão dos ares, que jamais voltaria a pousar sobre as copas frondosas dos arvoredos. E, neste dia, no dia em que entendeu tudo isso, Beethoven chorou, chorou seu choro de pássaro, seu canto de morte, que pelos ouvidos do homem, por terrível ironia, ecoava tal e qual uma sinfonia singular e harmoniosa. Foi então que o passarinheiro o batizou pelo nome que teve e pelo qual o chamamos: Beethoven.
Beethoven chorou suas penas; chorou seu canto de ave, seu assovio de dor; correu dias chorando, e correu semanas, e meses, e anos. Com o tempo, ele se acostumou, não poderia ser diferente. O homem os protegia, dava a eles a segurança de uma vida sem predadores e perigos. À exceção de um gavião-carijó que vinha pousar no cimo da palmeira do quintal, nem um gato se aproximava deles. A comida era farta, muita fruta no gradil, o comedouro de alpiste sempre cheio; a água, fresca e limpa, sempre renovada no bebedouro. O homem falava manso, parecendo que cantava também, imitava o canto de um por um com os seus lábios em bico, fazia festa, era pontual na hora do sono e na hora do acordar, madrugando com eles. E havia ainda a música clássica, que o homem ouvia sempre pela manhã enquanto cuidava da casa. E eles, os pássaros, ao que parece, também admiravam o jeito do homem de cantar com as coisas. E aquilo não era ruim. Mas também não era bom, não poderia chegar a ser bom para aqueles que já tiveram um céu inteiro para si. Se pudesse escapar, escaparia. Mas Beethoven não escapou, e se acostumou.
Pela tarde, o passarinheiro tinha o hábito de escolher um pássaro, que levava consigo para o fundo do quintal, pendurava-o num gancho da goiabeira, depois se estendia ao lado, numa rede de descanso, e ambos desfrutavam por horas do morno calor das sombras. Nestes últimos dias, o escolhido, quase invariavelmente, era Beethoven, porque cantava sem tréguas quando se via em meio ao vento e à folhagem. Algumas vezes, ele se calava, porque redescobria a sua saudade do céu, contemplando-o aos pedaços através da copa da goiabeira. Lamentava-se por não poder mais voá-lo livremente, com suas asas cheias de gana ganhando e ganhando distâncias. O que Beethoven não sabia é que seu destino estava prestes a se transformar, que o céu ainda seria seu pela última vez.
Não fazia muito tempo, mudara para a casa vizinha uma jovem inquilina, dada a proteger animais vulneráveis, entregue aos cuidados de toda sorte de bichos abandonados e feridos. Recebia em sua casa cães e gatos de rua, recompunha-os, doava-os a quem os queria por amor, denunciava maus-tratos, pagava veterinário a quem não o podia e até chegava a gostar de gaiolas, somente pelo fato de poder abri-las.
Certa tarde, quarando roupas no varal, descobriu, por cima da cerca de bambu que separava os quintais pelo fundo, o pássaro engaiolado pendurado num gancho da goiabeira. Não teve um instante de hesitação, elaborou rapidamente um plano para libertá-lo. Por dois dias vigiou os hábitos do passarinheiro, e conheceu que em determinada hora da tarde o homem se levantava da rede e dava um pulo até a casa, talvez fosse ao banheiro, talvez fosse bebericar um gole de café, o fato é que nesta hora, apenas nesta hora, deixava o pássaro ali, sozinho por alguns minutos. Era a deixa que lhe faltava.
Com o plano arquitetado, desfincou alguns bambus da cerca para agilizar a passagem e armou tocaia atrás de um hibisco-rosa, à espera da hora certa. Quando o homem se levantou e sumiu no escuro da porta, a moça retirou os bambus, atravessou a cerca e se dirigiu reta e certeira para a goiabeira. Beethoven, escolhido mais uma vez para estar ali, espantou-se com a moça se agigantando repentina por detrás do gradil, viu, atordoado, quando ela abriu a portinhola da gaiola. Assustado, Beethoven saltou para o poleiro mais alto e ali ficou, sem ação, no assombro de constatar aberta a portinhola que sempre estivera fechada. Com o recuo do pássaro, a moça não hesitou e meteu a mão por dentro da gaiola, agarrou-o delicadamente por entre os dedos e, como quem joga uma pedra, lançou-o para o céu. O pássaro, desorientado, ganhou os ares e foi pousar no cimo da palmeira do quintal. A moça, ágil, descruzou a cerca, recolocou os bambus e retornou para trás do hibisco a fim de vê-lo voar para a liberdade. Mas o que aconteceu depois pôs a perder todo o seu plano.
Beethoven foi incapaz de compreender o que lhe aconteceu. No alto da palmeira, sentiu um medo grande inchar dentro dele, não estava certo se podia voar como antes, não sabia sequer para onde, olhava assustado para todos os lados sem deslindar um norte que pudesse seguir. Lembrou-se do gavião-carijó que vinha pousar ali de quando em quando e, sem saber ao certo o porquê, precipitado pelo medo, saltou do alto da palmeira direto para a gaiola, pousou no gradil pelo lado externo, em dois pulos entrou portinhola adentro e aguardou pelo retorno do homem. Sentiu-se mesmo aliviado, estranhamente aliviado, quando o passarinheiro o trancou de novo, sem desconfiar de nada, cogitando que aquilo pudesse ser um descuido seu.
A moça varou a tarde alimentando frustrações, era impossível que aquilo tivesse acontecido, visto com seus próprios olhos o fato lhe feriu feito um golpe fundo. Como poderia libertar a quem não queria ser liberto? Mas o seu amor pelos animais era grande de não ter fim, e possuía ainda como certa a grandeza do seu ato. Tinha que existir outro jeito, e não tardou muito para descobri-lo. Haveria de soltá-lo em lugar distante, se possível à vista de uma mata, no ermo longínquo dos campos. Refez o plano, o modo de capturar o pássaro seria o mesmo, o de soltá-lo é que urgia diferente.
No dia seguinte, pela tarde, armou tocaia no mesmo lugar, quando se deu o ensejo necessário, a moça retirou os bambus, atravessou a cerca e se dirigiu reta e certeira para a goiabeira. Era novamente Beethoven o escolhido. Desta feita, não esperou pelo pássaro, abriu a portinhola da gaiola, meteu a mão por dentro, agarrou-o delicadamente por entre os dedos e o colocou num saco preto. Retornou rápida para casa, a bicicleta estava à espera no portão da frente. Sem olhar para trás, pedalou, pedalou e pedalou, a felicidade imensa lhe dando força nas pernas, a alegria desmedida de uma nova libertação.
Dentro do saco, Beethoven se debatia desesperado, completamente desentendido da razão de tudo aquilo, a vida mansa e regrada ganhando agitações incompreensíveis. Quando a bicicleta parou, Beethoven estava exausto no fundo do saco, imerso na escuridão, seu mínimo coração pulsava de medo e cansaço. De repente, um buraco de luz se abriu por cima dele e ele vislumbrou um pedaço de céu, um céu azul e fresco. Reunindo as últimas forças que possuía, voou pelo buraco e ganhou a amplidão. Pousou numa grande aroeira solitária no descampado e olhou para trás; na distância, pôde ainda ver na estrada a moça lhe acenando um adeus com a mão. Estava finalmente livre.
Beethoven voou e voou, por cima de campos e matas, por cima de rios e telhados, deixou para trás pequenos povoados, o vento lhe carregava pelas mãos, atravessando suas asas ágeis, que não haviam se esquecido do ofício de voar. Cansado e feliz, avistou um pobre casebre de roça perdido no nada, uma fumacinha fina a se desprender da miserável chaminé, um terreiro grande repleto de tantas árvores. Parou ali, na cumeeira de um jatobá novo. Saltando de galho em galho, desceu pela árvore em busca de alimento. Ao pisar o chão de folhas secas, uma pedra rotunda lhe atingiu em cheio a cabecinha, vinda do estilingue de um menino pequeno cujos pés descalços se sujavam com a poeira do terreiro. Nesta noite, durante o jantar, a família se reuniu contente ao redor da panela em que fumegava as carnes das dez aves alvejadas. Beethoven tinha sido a nona.
Tiago Feijó é professor e escritor. Formou-se em Letras Clássicas pela Unesp. É autor dos livros “Insolitudes” (7letras, 2015), “Diário da casa arruinada” (Penalux, 2017), livro finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e “Doze dias” (Penalux, 2022), livro finalista do Prêmio Leya 2021 e vencedor do Prêmio Manuel Teixeira Gomes 2021. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas e blogs de literatura.