– Alô, vizinha?
– Bom dia, Dona Nádia, tudo bem? – atendi ao raríssimo evento de receber uma ligação.
– Tudo bem, querida! Escuta, queria saber se vocês podem levar eu e a Alice no velório de uma amiga, hoje à tarde?
– Claro, podemos sim!
Contestei sem pensar muito. Eu sentia que devia um favorzinho à Dona Nádia, que dias atrás havia me acolhido como família na sua casa; uma das poucas na vizinhança com energia elétrica e sinal de internet depois das chuvas históricas do mês de maio. Eu precisava trabalhar e ela dispunha desses dois recursos tão básicos quanto escassos naquele momento de caos completo. Arrumou um espaço na mesa da sala para mim e uma cadeira com almofada; no fim da tarde tomamos umas cuias e jogamos conversa fora. Eu queria demonstrar minha gratidão pela boa recepção, ainda mais sendo nova em uma vizinhança em que ela e a irmã Alice já vivem há 40 anos. Então coloquei meu carro e tempo à disposição se elas precisassem de alguma coisa no centro da cidade por aqueles dias. Eis que surgiu um velório em um sábado à tarde.
No horário combinado, estacionamos o carro em frente ao pátio das duas irmãs. À medida em que descíamos a estrada estreita e curvilínea que chega até a parte mais baixa do bairro, as cenas desoladoras de destruição aumentavam em proporção. Em alguns pontos, a marca d’água nas paredes ultrapassava a altura das janelas. Lavouras perdidas, casas destruídas, vidas afetadas e também ceifadas. Os corpos de duas crianças foram encontrados pelas equipes de busca dentro de uma geladeira, na encosta do rio. ‘’Eu passei por lá hoje de tarde e vi que a polícia algemou o pai’’, comentou outro vizinho aquela semana, na varanda da Dona Nádia, enquanto comprava o pão caseiro que ela produz. Eu vim a notar com o passar daqueles dias de coworking, que a casa das irmãs também funcionava como ponto de encontro (e fofoca) da vizinhança.
– Eles não gostam que a gente fale isso, mas para mim, abriram as comportas da barragem e não querem nos dizer! – Afirmou a vizinha, quando já nos aproximávamos da funerária.
Alice, prontamente concordou com a sua irmã. Nós ficamos em silêncio, sem saber o que dizer. A fofoca (ou a famigerada fake news) de que a barragem havia estourado, ou ainda, de que a prefeitura havia aberto as comportas, circulou causando pânico por toda a cidade e foi desmentida – com direito a vídeo gravado no local – pelos canais oficiais do município.
– É aqui! Nós vamos ficar uma hora, no máximo.
– Tudo bem! Vamos estacionar e esperamos vocês.
Aguardamos nossas passageiras caminhando pelos arredores do cemitério e confabulando sobre o efeito placebo que uma fake news bem implantada é capaz de exercer. Parece mais fácil simplificar o acontecido a um problema de barragem, do que questionar a forma como desviamos, desmatamos, aterramos, poluímos, canalizamos e ocupamos a margem do rio.
Marília Petry é estudante de História e permacultora. Escrevendo, encontra outras e diferentes formas de sentir, e pensar. Encara a escrita como um exercício de testemunho das mudanças internas e externas e, portanto, sem fim.