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Eu fui o que pude, eu dei o que tinha. Se estava em pedaços, como ser inteira?

E foi assim que me dei conta da tarefa da colcha de retalhos. Tarde de domingo, absorta como se estivesse na terra de Nárnia, lendo sobre literatura fantástica, reclinada confortavelmente na espreguiçadeira da varanda da sala, sou interrompida abruptamente por vozes desconexas que pulam das entrelinhas do livro. Um atordoante alvoroço se estabelece! Assustada, desvio a atenção da leitura, repouso o livro no colo e busco refletir sobre o que se passa ao meu redor, entender esse estranho acontecimento advindo das páginas; pensativa, meu olhar foge, vagueia pelo ambiente e se detém curioso sobre uma colcha que ornamenta a alfaia rustica da sala, fato que aumenta a minha inquietação. Entre agonia e curiosidade levanto-me da espreguiçadeira, vou na direção dela, fito-a com repentino interesse. Noto sua beleza, ainda que descolorida. Observo sua perfeita incompletude, a costura, a textura, o tecido desbotado. Essa colcha fora um presente materno costurada com ternura em tempo primaveril que desgastada pelos anos do seu inverno já não aquece mais, e essa constatação enterneceu meu coração. Olhando para ela, vejo narrativas paralelas, desalinhavadas, passeando diante dos meus olhos, e revisito o meu mundo interno através das lentes borradas das minhas retinas.

Memórias de outrora saltam da velha colcha e bailam diante de mim. De pronto ponho o livro ao lado, tomo-a entre as mãos, os dedos passeiam sobre as suas costuras, entre os seus relevos e bordados. Enquanto assim fazia, eu vivenciava claramente as histórias que se descortinavam em cada ponto, escutava o cochicho das vozes que advinham dos seus alinhavos. Em seus nós, as horas! No desgaste das suas linhas, os segredos! Visualizo um tempo diante de mim e as marcas de muitas histórias impregnadas nas suas tramas denotando a vida que ainda aspira; compreendo neste momento que a tarefa do refazer a colcha urgia e soava sagrada, um convite inevitável para a arte do fazer e do refazer-se; tempo do velho ceder ao novo, momento da mudança que certamente chega! As partes surradas questionando como ser inteira com tantos pedacinhos. Não sei se pergunto à ela ou a mim mesma. Intuitivamente nasce o desejo de recriar a velha colcha; a pego no colo e vou lentamente pondo mãos à obra, cortando as costuras no tecido roto e gasto, as linhas, as costuras desbotadas, remendando os novos retalhos. Compreendo que a tarefa desse cerzir seria um tanto quanto desafiadora; alguns tecidos, de tão gastos, já não cabem mais na velha colcha; a constatação da necessidade do cortar, separar, remendar, costurar pedaços, refazer novos laços não é de todo fácil, entretanto, a tarefa se impõe inadiável!

O ajuste de cada ponto contém em si o afinco sentimental da própria natureza das separações e eu não pude evitar a tristeza d’alma diante do adeus aos velhos retalhos que a embelezaram por tanto tempo, contudo já não servem mais. As inquietações iniciais, as mesmas de quando lia o livro, retornam sacudindo as minhas lembranças com perguntas aflitivas, apavorantes: como não caber mais em si mesma? Puída, rota, vã? E as memórias? E os fragmentos? O descarte carrega certa nostalgia, esses retalhos contêm histórias guardadas. Reflito sobre mim mesma enquanto refaço a colcha, penso na semelhança com cada retalho de tecido, com os afetos enclausurados que se revelam através do entrar e sair da agulha; as mãos calejadas do passado roçam as mãos do presente; sinto lágrimas contidas gotejando de suas tramas, pensamentos cansados se mostrando nas fibras do agora. Em cada ponto a conexão com narrativas e diálogos silenciados, enredos quase esquecidos, mas que ao serem tocados pulsam vívidos em cada troca de retalho. Lembra-me um poema de João Cabral de Melo Neto, “TECENDO A MANHÔ. Nele, um galo ia tecendo uma manhã, através do canto de outros galos; e aqui o meu fazer similar me ocorreu. Ao refazer a colcha, as mãos de agora tocam as mãos de ontem por meio dos velhos e dos novos alinhavos, remexendo sentimentos guardados, expelindo murmúrios sufocados ecoando os silêncios de outrora! Os galos precisavam de outros galos para tecer “uma manhã”, e aqui as mãos do passado precisam das mãos do presente para os novos entrelaces, para costurar novos contos, ressignificar o hoje, tecer nova manhã com novos enredos.

Parece que as histórias são como embriões que precisam brotar de novo e de novo em diferentes terrenos, incansavelmente! Nessa alquimia entre mim e a colcha, a testa enruga, os olhos marejam, as mãos oscilam ante as narrativas correndo entre os dedos, delineando-se na indefinição dos novos fragmentos, na incerteza das novas tramas. Eu olhei para mim, eu olhei para a velha colcha… concluí que costurar retalhos tem a sua nobreza. Remendar cada pedacinho toca o âmago de sonhos adormecidos que clamam por serem despertados. E na tarefa dos recortes dos novos retalhos brotam as inevitáveis escolhas. O descarte de um pedaço ou outro simboliza cisão, o luto chamando para o processo alquímico de transmutação. Do nigredo para o albedo, que eu defino aqui como a fase letárgica dessa alquimia que vai da inconsciência à lucidez, da escuridão para a luz, estágio dolorosamente necessário, cíclico, coniunctio transformador! Entre emendas e arremates há os pequenos intervalos que se configuram como o minuto reflexão, a pausa da vida, o espaço entre instantes. O tempo em que as horas e os segundos se enamoram. Costurar é alinhavar encantos, segredos, enamoramentos, mas também desencantos; é caminhar por sendas desconhecidas e com as mãos tocar o doce mistério da vida, acolher narrativas secretas, brumas guardadas no recôndito da alma que, revisitadas, se unem recontando experiências e sentimentos. Ávidos, os meus dedos passeiam por aquela colcha e os seus entrenós murmuram ansiosos por refazer caminhos, arrematar o tempo e conciliar ventanias! Os retalhos dialogam entre si e se recriam em novos remendos, através do entra e sai da agulha, do vai e vem das linhas, dos passeios entre os seus entremeios, mas agora recheados do novo, novos sorrisos, o que não descarta o afluente de lágrimas.
E como um fazer infindo a costura vai refazendo a colcha e embora seja a mesma, jamais será igual. Algo similar às águas dos rios que se renovam e nunca serão as mesmas por onde passam! Tanto quanto a fênix e suas cinzas, a borboleta e sua crisálida, a águia e suas penas, a colcha também se refaz, ressurge em seu frescor revigorada e na completude dos seus pedaços, volta a aquecer. Dos novos retalhos, ela se torna grande o suficiente, em seus novos arremates, bela o bastante; refeita, nela nada se exclui, exagera ou finda!

E uma colcha em si, uma colcha em mim também se refaz. Inteira…

Bermuda, junho de 2020.

Tai Brito é formada em Letras com Lingua Espanhola, membra da Academia Luminescense (França – 2021), Academia de Letras musicas e artes da Bahia (ALMA cad.142 ) N.A.L.A.P (Portugal) e Mocambique.

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