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A vida de Márcia não era triste. Ela não se sentia exatamente feliz nos últimos sete anos, mas nada que a autorizasse a considerar triste sua realidade. Aos 44 anos, Márcia acabara de ser promovida a Gerente de Comunicação e Relações Institucionais — escrito assim, com todas as iniciais em maiúscula — em uma Empresa Pública que não cabe detalhar. Além de um salário ligeiramente menor que o da atual amante do presidente da respeitável instituição — afinal, o que são 5 mil reais hoje em dia? —,a promoção também dera a Márcia menção honrosa nos murais enferrujados dos corredores da sede, provando que seu percurso de 23 anos, iniciado quando ainda era uma estagiária, era o que se poderia chamar de sucesso.

Dois anos antes da oficialização do título de Gerente, Márcia se tornara mãe. E, excetuando a idade avançada de sua própria mãe, que agora dera para ter crises de pânico e demandar mais a atenção da única filha entre os quatro rebentos de Dona Edilene, poderia se dizer que Márcia tinha alcançado o que poucas mulheres conseguiriam. Estava no auge.

Um dia normal de sua vida, o que na verdade eram quase todos, se iniciava às quatro da manhã, com o preparo do café da manhã, o banho para o trabalho e arrumação do filho, o pequeno Moisés, para a creche. Às cinco e meia em ponto, Márcia precisava estar no ponto de ônibus, onde o coletivo disponibilizado pela empresa a buscaria. Ir de carro seria uma opção, se o marido não tivesse vendido o dele e passado a usar o de Márcia no desempenho de seus deveres de pai. Mas o transporte era o de menos, já que Márcia aproveitava as duas horas e meia de deslocamento para ler e-mails e responder às mensagens mais urgentes. A maternidade e as duas décadas de translado de uma ponta da cidade à outra haviam preparado Márcia para poucas horas de sono. Às vezes nenhuma, dependendo da saúde de Moisés, de Dona Edilene ou do humor de seus chefes. Apesar de Gerente, Márcia respondia ao Presidente, cinco Diretores e uma dezena de Gerentes, que se sentiam mais chefes do que ela.

No trabalho, poucas horas de respiro entre reuniões longas e quase sempre improdutivas. Márcia tinha, sobretudo, o desafio de lidar com pessoas que possuíam opiniões demais sobre o trabalho dela. Mas não esperava nada de diferente após tantos anos de experiência na Comunicação. Em dias de sorte, às 13h conseguia almoçar o que havia restado no self-service em frente ao trabalho, que chegava a atender quatro mil pessoas por dia. Ela até poderia levar comida de casa, mas, ultimamente, o presidente tinha dado para ligar às onze da noite, justamente no horário em que ela costumava cozinhar. Na maior parte dos dias, dava conta de improvisar apenas a comida de Moisés e do marido, que precisavam se alimentar bem.

À tarde, Márcia costumava ficar imersa nos problemas da sua equipe e botava a mão na massa nas atividades que estavam atrasadas. Muitos Gerentes pareciam julgá-la por ser tão técnica e desempenhar atividades que deveriam ser simplesmente delegadas, mas desconheciam a configuração atual do setor. Acontece que o Presidente tinha demitido dois membros de sua equipe havia um mês, sob pretexto de “ordens do governo para contenção de gastos”. Pouco tempo depois, para surpresa de Márcia, o “time” voltou a crescer com a contratação da filha do cabeça da Assembleia Legislativa e de um amigo de beach tennis do Presidente, que se comunicava muito bem e chegava para somar. Márcia não sabia se era bom ou ruim que eles ainda não tivessem começado no trabalho, mesmo que já tivesse aprovado o pagamento de ambos. Às cinco da tarde, ela já estava no ônibus e contava com mais duas horas para responder os demais Gerentes e o Presidente sobre a Crise do Dia.

Na volta, Márcia descia em outro ponto e se dirigia para o terceiro expediente como gerente, agora na casa da mãe, onde fazia o balanço da despensa, conferia a limpeza da casa e a quantidade de roupas sujas, além de ouvir o relato de todas as novas dores que Dona Edilene tinha começado a sentir. Ela preparava um café e arrumava a mesa do jantar para os irmãos que não perdiam o hábito de comer na mãe, ainda que ela já tivesse 80 anos. Quando necessário, Márcia agendava médicos, ligava para diaristas ou preparava listas de compras para fazer no dia seguinte. Tudo isso enquanto esperava o marido buscá-la e ouvia as opiniões dos irmãos sobre como ela estava engordando ou como a nova tonalidade de loiro no cabelo não tinha lhe caído muito bem e a fazia parecer dez anos mais velha.

Era como Márcia se sentia — dez anos a mais. Seu corpo estava sempre cansado, mas não significava que podia descansar. Em casa, era gerente e equipe inteira. Precisava se informar de Moisés, da creche, das atividades pedagógicas, das festinhas próximas, da terapia e dos acompanhamentos pediátricos. Também não podia deixar de brincar com o filho, passavam tanto tempo separados. O menino parecia sentir sua falta. Para prolongar o tempo com a mãe, Moisés resistia ao sono e só dormia às dez da noite. Nesse tempo, o marido tomava banho e descansava. Márcia às vezes pensava em reclamar, mas se continha: ele levava e buscava Moisés da creche, e ainda lavava uma louça.
Em uma noite, assim que colocou o menino para dormir, Márcia sentiu uma fisgada. Nada muito grave, apenas uma leve comichão entre as pernas. Tinha sentido antes, no banheiro do trabalho, na primeira vez que tinha lembrado de fazer xixi naquele dia. Decidiu adiantar seu banho para se livrar da sensação, mas uma breve inspeção do fundo da calcinha lhe antecipou o fracasso da solução: era uma candidíase já bem desenvolvida, com seu corrimento esbranquiçado característico. A descoberta não deixou Márcia feliz, mas que mulher não tinha vivido aquilo pelo menos uma vez na vida? Compraria um remédio logo cedo.

No dia seguinte, Márcia dormiu com uma coceira e uma tarefa a mais. Ao amanhecer, a rotina se repetiu. A coceira se tornou um pouco mais insistente no trabalho, mas Márcia contornou bebendo mais água, indo mais ao banheiro e prometendo comprar o remédio logo que saísse da casa da mãe. Após o expediente, encontrou uma Edilene chorosa e dois irmãos em pé de guerra por conta de um empréstimo. Quando a situação foi controlada, já era tarde, Moisés aperreava para ir embora e, ao tentar acalmar o filho, Márcia sentiu sua pele febril. Era comum nos inícios de semestre, quando a creche se tornava uma verdadeira incubadora de doenças. Márcia e o marido correram para casa. Depois de uma boa conversa com a pediatra, que deu as recomendações necessárias, ela se sentiu mais tranquila. Então a coceira voltou. Quer dizer, sempre estivera ali, mas às vezes conseguia se esquecer dela.

Márcia comprou os remédios no terceiro dia, junto com a receita do filho. Aplicou a pomada intravaginal por três dias e sentiu o alívio de não ter as partes íntimas em chamas por outros três dias. Mas logo a coceira voltou. Márcia repetiu a dose, dessa vez recorrendo às pomadas de sete dias de aplicação. Sem sucesso. No segundo mês desde o início da comichão, aproveitando uma viagem do Presidente, Márcia procurou uma ginecologista. A mulher, com idade próxima a sua, vestindo jaleco impecável e sapatos reluzentes, receitou uma dose mais forte sem nenhum questionamento ou outro conselho. Ao fim dos dez dias de tratamento, a coceira não havia sumido por completo. Como por misericórdia, aos fins de semana, o fungo até parecia lhe dar uma trégua, mas às quatro da manhã das segundas-feiras, se agitava com o primeiro toque do despertador de Márcia.

A mulher desistiu de todas as calças e providenciou calcinhas 100% algodão, passou a ingerir kefir — que por sorte a filha do presidente da Assembleia Legislativa cultivava —, comprou comprimidos de lactobacilos, tomou gotas de óleo de orégano, experimentou lavar as roupas com óleo de melaleuca, seguiu todas as indicações do Google, exceto a de enfiar um alho na vagina, que parecia um pouco mais questionável que as demais. Sentia-se cada vez mais exausta no combate àquele fungo e mal conseguia disfarçar a irritação que a coceira lhe causava.

Não queria compartilhar com ninguém o motivo de suas angústias. Podiam achar que tinha uma IST, quando, na verdade, sexo tinha se tornado uma impossibilidade. Justamente por isso, precisou contar ao marido. Ele reagiu bem. Fez uma careta de nojo e disse que logo passaria. Mas, não tendo conseguido transar em três meses, começou a desconfiar da mulher. Quando a coceira dava uma breve trégua, Márcia até se dispunha a tentar. Mas bastava ficar um pouco excitada para a comichão retomar.

Quando não sabia mais o que fazer, tirou um dia de folga e procurou novamente a médica. A infecção tinha piorado, agora o odor que ela exalava ao retirar a calcinha era muito mais alarmante e se pegava com vontade de gritar quando havia algum pico de coceira. Algo que quase acontecera no dia anterior, enquanto explicava uma campanha para o chefe. Talvez não fosse mais uma candidíase. O líquido esbranquiçado saía também de seus seios; os cantos de suas unhas, de onde arrancava pelinhas com frequência, coçavam, e todos os seus dedos estavam avermelhados. O pior de tudo era a sensação de embotamento nos olhos, como se houvesse uma produção excessiva de remela que tornava sua vista pesada e embaçada.

A médica ouviu seus sintomas impassiva e começou a digitar no computador. Márcia interpretou como bom sinal. Em primeiro lugar, precisavam saber se era candidíase, disse a médica, e repassou uma guia de solicitação de exames, dando por finalizada a consulta. Márcia correu ao laboratório a fim de realizar o exame o mais rápido possível para que logo pudesse obter sua medicação. Depois da coleta, descobriu que se tratava de uma cultura, prevista para ficar pronta dali a um mês. Enfurecida de coceira e desespero, Márcia se dirigiu à farmácia mais próxima. Pediria os remédios de sempre, nem que fosse para obter algum alívio. Para sua surpresa, estavam em falta. Na farmácia seguinte, também. E já era quase hora de buscar Moisés na creche. À noite, depois de finalizar todas as suas tarefas, sentiu que a coceira estava tão violenta, que a sensação era quase de que lhe coçava o cérebro.

Às 4h, Márcia não levantou com o despertador. O marido desligou o alarme insistente sem nem lançar um olhar à mulher, que não levantava. A morte foi descoberta pelo pequeno Moisés, uma hora mais tarde, ainda que ele não entendesse por que a mãe não queria levantar. O marido e D. Edilene não ousaram informar ninguém a causa mortis.
O velório foi pouco movimentado. Ocorria uma greve de ônibus ou algum tipo de paralisação trabalhista. D. Edilene se remexia na cadeira de tempos em tempos, inconformada com o destino da filha. O Presidente mandou flores e alguns poucos gerentes compareceram. Da equipe de Márcia, também muitas ausências. Algo parecia estranho, mas era difícil se importar tanto com o público do velório diante daquela perda. O marido de Márcia foi quem notou. Em um momento, cutucou um irmão dela e comentou: parece que Márcia não tinha amigas. Pelo menos nenhuma bonita, concordou o irmão. Os dois assentiram.

Na outra semana, nos telejornais, ainda se falava sobre o dia da morte da Gerente. Não que tenham cedido algum destaque à mulher. Mas, por alguma casualidade do destino, naquele dia havia ocorrido em todo o mundo uma greve geral de mulheres. Um movimento nunca antes visto em proporções mundiais. Não se sabia das fontes organizadoras do movimento ou que ferramentas tecnológicas haviam auxiliado na mobilização. No dia seguinte, algumas retornaram ao trabalho com atestados médicos, que não foram aceitos pelos setores de pessoal. A desconfiança pairava no ar e, por mais que os serviços tenham sido normalizados por um tempo, o mundo não voltaria a ser o mesmo.

Seane Melo é jornalista, escritora e doutora em comunicação pela UFF. Lançou seu primeiro romance, “Digo te amo pra todos que me fodem bem”, em 2019, pela Quintal Edições. E possui dois eBooks de contos eróticos publicados de forma independente, “Ao vivo em Goiânia: quatro contos de patroa” (2017) e “O primo de Aziz” (2019). Atualmente escreve na newsletter (À) Vontade, no Substack.

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