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Pi, pi, pi, agora é este som que me embala o dia todo. No começo me atordoava, pi, pi, pi, eu dormia e sonhava com ele, acordava e ele continuava ecoando, fiquei um pouco neurótica, os tampões de ouvido que me deram foram incapazes de impedir meu cérebro de se lembrar do incessante, pi, pi, pi, mas, quinze dias depois quase não o percebo, não quer dizer que me acostumei, entre uma visita e outra, entre uma aferição e uma troca do acesso, percebo ele sendo abafado, fica longe e deixa de ser o principal som que ouço, mas quando volta a quietude ele também retoma seu protagonismo, pi, pi, pi… é minha sinfonia do adeus.

Isso me faz pensar no ciclo que percorremos durante a vida, me lembro de embalar meus filhos sempre cantarolando, me lembro de que eles mesmos, ainda bebezinhos, cantarolavam quando estavam bem relaxados e adormecendo. Não me lembro de como eu fazia quando era bebê, essa minúcia passou batido nos registros da minha memória, só sei que minha mãe cantava, adorava cantarolar para mim enquanto eu crescia em sua barriga.

Soube que me mostrou suas canções prediletas naquele período, diziam que era possível ouvi-la de longe entoando boleros a cada fim de tarde quando o calor amainava e ela saía para caminhar para aliviar seus inchaços. Minha mãe cantou muito para mim antes de eu nascer, e me contaram que souberam que alguma coisa estava errada quando num dia ela saiu para uma de suas habituais caminhadas pelo quintal e não cantou. Estranharam o silêncio e foram conferir se estava tudo bem. Minha mãe agarrava-se com uma das mãos à grande mangueira do quintal, muda, pálida, sem tirar os olhos da bica d’água e sangue que escorria por suas coxas, enquanto a outra mão estava atada ao ventre me segurando, a acudiram e correram para a emergência.

Eu não estava tão fora do tempo, já estava bem madura quando minha mãe precisou ser internada para um parto de emergência em decorrência de uma pré-eclâmpsia, eu nasci bem e saudável, mas disseram que não fiz um barulho e que foi preciso muito esforço do médico para me fazer chorar, e nem foi choro o que saiu, foi um grito, como se eu estivesse avisando que estava lá e bem. Depois voltei a ficar quietinha. Disseram que minha mãe ainda conseguiu me dar o peito, mas depois de dois dias de luta ficou muda para sempre.

Fui criada pela minha avó, que depois de perder a única filha, nunca mais quis ouvir música. Meu pai era um homem calado, mal se ouvia falar, dirá cantar. Meu nascimento foi também uma tragédia, minha mãe era alegre, falante, risonha e cantava sempre. Cantou mais quando descobriu que estava grávida e fazia planos de cantar todas as serenatas que sabia para mim. Com sua morte enterrou-se seu corpo e a voz que embalava nossa casa. Mesmo eu nasci quietinha, miudinha, quase não chorava, era mais um muxoxo o que eu fazia e minha avó contava que era porque eu sabia que alguma coisa estava errada ou faltando. Ela dizia que meus olhinhos de recém-nascida ficavam esbugalhados como se estivessem procurando a voz que cantou pra eu vir ao mundo.

Agora estou aqui com esse pi, pi, pi, que nunca acaba. Meus filhos estiveram aqui hoje, me olharam como se eu não soubesse o que está se passando, imagine só, mais de mês numa cama de hospital, dia e noite ligada à essa maquininha, que é pi, pi, pi, o dia todo nos meus ouvidos. Eu só queria que tudo ficasse quieto de novo, queria fechar os olhos e descobrir a voz da minha mãe que ficou escondida na minha cabeça. Durante toda vida eu cantei boleros imaginando qual seria o preferido da minha mãe, jamais saberei.

Chega uma moça que eu reconheço de algum lugar, pega minha mão e me diz que acabou, pisco um pouco e apuro os ouvidos, tudo quieto, só ela cantarolando um bolero antigo que há muito eu tinha me esquecido, com um sorriso ela me sussurra “é o meu preferido”.

Monique Bonomini é escritora, atua com leitura crítica e revisão. É autora de Abismos para evitar ruínas e-book e podcast e integrante do Coletivo Escreviventes, do Coletivo Ruído Rosa e do Clube de Ficcionistas.

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