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A mãe batia só nas galinhas. Depois, eu nasci. Eu era menina e já sentia saudade delas, quando morriam. Cada uma canta do seu jeito, risca o chão com ciscado diferente, bate as asas bem aberto, ou de lado, ou assim, cambotinha, mostrando as penas pra gente ver. Eu sinto saudade delas, sim. Os olhinhos miúdos. Pescocinho careca. A mãe chupa os ossinhos do pescoço fazendo barulho.

O primeiro enterro que eu fiz foi debaixo do pé de limão. Nem teve velório, foi só enterro mesmo. Uma rolinha que o gato comeu só uma asa, espalhou pena pelo terreiro todo e depois largou a coitada despedaçada, na escada da cozinha. Eu não consegui ver. Virei o rosto pro outro lado e desatei a correr. Mas me deu um aperto, uma tristeza tão doída, a rolinha lá, sozinha e sem asa e já ia anoitecer. Voltei no mesmo pé que tava fugindo. Catei o corpinho mole e fiquei zanzando com ela. Ali já sumiu nojo, medo, sei lá mais o que. Ela só tinha eu. Eu não podia faltar.

Depois da rolinha, perdi as contas. Enterrava sanhaço, gato envenenado, outras rolinhas. Galinha não, delas só sobrava osso. Cachorro foram só dois. Fiz velório pro Jagunço, tadinho, tava velhinho quando morreu. Tava igual ao dono, seu Manoel Tinoco. Não demorou muito pra ele ir também. Perdeu o companheiro, daí emborcou a cabeça, arriou coluna, espinhela, não teve jeito, não. O outro era vadio, passava na minha porta dia sim, dia não. Eu chamava ele de Zé Chouriço, porque ele tinha cor de chouriço. Mataram na paulada, na covardia. Pra ele, eu catei até flor. Gambá enterrei só um. Os dentinhos afiados, tava morto e tava rindo.

Dia desses, comecei a ter sonho ruim. Eu corria, corria, com a rolinha na mão. Não era qualquer rolinha, era a primeira que enterrei. Ela era roliça, mais clarinha, sei que é ela. Em todo sonho ruim eu tô correndo. Teve outro, eu pulava uma cerca e ficava perdida, num pasto. Tinha um homem com cabeça de boi, eu não via ele, mas ele queria me pegar. Eu gritava “mãe!”, e puxava a saia dela, igual eu fazia quando era miúda ainda. Mas a mãe aparecia com a machadinha e me segurava pelo pescoço, e me deitava no tronco de corte. 

Fui ver Dona Cecília, a benzedeira. Me custou duas meiotas e os souza paiol que consegui achar em casa. Me lavou com água de bacia e me deu meia garrafada. Adiantou foi nada. Voltei de novo, dessa vez sem pagamento, tinha outro sonho pra contar. Acordei colenta, tinha mijado na cama. Tava lá o cabeça de boi, o Jagunço, o gambá risonho, o pasto cheio de cercas e a mãe. E o machado da mãe. E o meu pescoço tinha virado pescoço de galinha.

“Sonho é labirinto, fiota. Dê conta de acordar.” E Dona Cecília disse mais nada. Assuntei por aí, ninguém me explicava o que é labirinto. Seu Deocleciano me ofereceu um corte de tecido e uma chaleira pra eu deixar a mãe sozinha e ir dormir na casa dele. Disse que lá não tem sonho ruim. Pra que eu fui contar. “Questão de tempo, bichinha… logo, logo, você vai ser igual sua mãe…” e fez o mesmo barulho nojento que a mãe faz quando chupa osso.

Não tenho medo de enterrar os bichos. Cuido deles na vida, cuido deles na morte. Ela bate, eu cuido. Tenho medo é de ir dormir. Medo de sonho ruim, do cabeça de boi. Do labirinto da Dona Cecília. Tenho medo que de tanto dormir e acordar, num dia o sol vai raiar e vai ser minha vez de cortar pescoço. Tenho medo do Seu Deocleciano. Tenho medo de virar a mãe.

Olívia Avelar é formada em Letras e pós graduada em Filosofia. Em 2022, publicou seu primeiro livro – Azul da Prússia – pela Editora Folheando. É professora e escritora membra da Academia Cachoeirense de Letras. Nasceu e vive em Cachoeiro de Itapemirim, ES.

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