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A palavra que saiu da boca do professor foi: defesa!
Todos ouviram de-fe-sa. Menos eles.

Era dia de apresentação das redações. Atividade não-obrigatória, porém, acrescentava pontos extras.

Não foi por pontos, não precisava, tinha de sobra. Foi pela vontade de contar a descoberta que fez no laboratório.

W. parou no centro da sala, de pé, com a cara à mostra, cicatriz do lábio leporino brilhava na luz do Data Show esquecido ligado. Mais alto que a maioria da sua idade. Corpo atlético parecia não combinar com a voz fina da mudança adolescente, mas que ficou ali, sem acompanhar a energia do menino.

Contou sobre a vida das abelhas e tudo o que conseguiu observar nelas a partir das aulas de biologia. Hipnotizado pela constância de organização, decidiu criá-las em casa, para observar mais a espécie, das mais evoluídas, ele concluiu na redação.

Esperava ouvir perguntas curiosas, mas a sala apática não respondeu. Só despertou no riso quando ouviram:

— Ele quer ser abelhinha! A vozinha fina combina com a roupinha de abelha! Vai andar com um monte de abelhinhas e usar anteninhas também?

Eles, os três inseparáveis, sempre tinham falas que consideravam cômicas. Só falavam juntos, assim eram mais fortes. Assim eram. Sozinhos não existiam.

O professor retribuiu a reação da turma com o lema em replay: só fale se for contribuir, não destruir!

Não convenceu os adolescentes, mas agradeceu W. pelo belo trabalho e chamou o próximo.

K. precisava de pontos. Só por isso iria se expor. Ficar sentado em um canto invisível da sala era sua vontade vital, mas de certa forma se identificou com aquele trabalho e se interessou pelo que escreveu. Contaria sua verdade, e ficaria surdo para os demais.

K. dispensou os termos científicos estudados e transformou o escorpião, tema escolhido, em algo maior, pertencente a sociedade. Chamou a redação de “O Escorpião Urbano”. Destacava dele a força, e como era orgulhoso em andar sozinho, justo porque a tinha.

A sala não respondia. Todos juntos no mesmo espaço, porém alheios ao redor.
Os três não. Era a hora preferida deles. O momento do show:

— Uiuiui…aposto que você queria ser esse escorpião, hein grandão? Quantos detalhes! Não vai contar aí também que você se mija na cama? Só assim para feder tanto!

Eles se revezavam em frases de criatividade trágica.
O professor não tinha sucesso com dizeres de: reconheçam a dedicação do colega; aprendam com ele; parabéns K.

K. era mesmo como o escorpião, acumulador de sentimentos, isso eles tinham em comum. O escorpião guardava tudo na cauda para despejar de volta no inimigo, quando ameaçado.

K. os guardava no físico corpulento e o excedente vertia em suor por todos os poros. Na testa grudava o cabelo, amarelava a gola do uniforme branco, amassava e rasgava os cadernos e todas as folhas em que tocava. Exalava o cheiro da falta de higiene.

Demandava cuidado especial para essa explosão de sentimentos revertidos em hormônios, mas não o recebia. O que quer que fosse, ele não tinha.

Mais um dia de aula acabado. Professor desolado pelo sucesso com uns e fracasso com todos. Acreditava que alguns daqueles tantos iria ser feliz na vida, “por favor, pelo menos alguns”, ele pedia. E acomodava seus pensamentos com um, “adolescência não é fácil”.

Já em casa, os cinco choravam por motivos diferentes.

Aqueles três, só tinham uns aos outros. Cúmplices das famílias semelhantes, sabiam o que era ouvir gritos e choros. Na saída da escola, compactuavam conformados, se seria naquela noite, a vez deles também.

Não sabiam o que contribuir era, como pedia o professor. Só conheciam o outro. Quando em sala o riso cessava, os olhares cúmplices marcavam o horário da conversa digital, momento de compartilhar o volume dos palavrões e desaforos. O vocabulário que aumentava para contribuir com as futuras destruições do dia a dia.

Guardavam, bem escondida, a insegurança em demonstrar que acharam interessante a vida das abelhas, em suas companhias dedicadas. Assim como idolatraram a coragem do escorpião, e também a desejavam, em busca de uma vida diferente.

Para todos eles, a rotina escolar não mudou até o fim do ensino médio.

K. desenhava nos cadernos o escorpião urbano, o escorpião-homem que descobriu. Não ouvia mais o professor. Para não ouvir os colegas, preferiu não ouvir mais ninguém.

W. se afundou nos livros, sozinho na escola e em casa, registrava diariamente o comportamento das suas abelhas. Com elas não precisava conversar. Em sala, só ouvia o professor, para não ouvir mais ninguém.

Acabou. Escola acabou. Momento de viver a vida de verdade. Cada um por si no mundo. Tudo ficaria no passado. Todo o bom que sempre tem. E todo o ruim também.

Poucos anos depois, W. voltou a escola. Convidado. Como engenheiro químico foi falar sobre o grupo que criou para desenvolver vacinas. Dessa vez a plateia respondeu as suas expectativas. Estava seguro de si. A voz falava mais alto, não importava o tom. Só importava o que dizia. A ajuda que ele tanto precisou, agora era ele quem oferecia.

Ao sair, olhando o muro da escola, reparou que era baixo, antes parecia alto como uma muralha que o prendia.

K. também voltou. Entendeu como ameaça aquele muro, mesmo pequeno. Entrou intruso. Sem plateia o aguardando. Atacou. Escolheu onde o veneno do bicho era fatal. O mundo acabou ali.

As feridas dos que restaram, sararam. As almas não. Tampouco as famílias. Os professores desistiram de dar aulas. A escola virou-se para dentro e morreu ali também.

Os três viram na televisão. Sentiram-se cúmplices. Mais culpados e menos vítimas. Nunca viram que sempre sofreram golpes lentamente perversos como os urgentes lançados aos pequenos.

W. também ouviu a notícia, sentiu-se minúsculo. Impotente. Olhou a colmeia no quintal. Pequena, intocável, com trabalho, oportunidade e igualdade para todas as abelhas. Era lá que queria estar. Virou homem-abelha.

A palavra que saiu da boca do professor naquele dia de aula foi: defesa! A técnica utilizada pelos insetos. Todos ouviram de-fe-sa. Menos eles.

Cecília Vieira é brasiliense, mãe de dois meninos e mestre em Recursos Humanos pela Universidade de Salamanca, Espanha. Estreou na literatura com o infantil Marina a girafa que queria ser estrela, na Bienal SP/22. Publica contos em antologias e revistas literárias. O conto, Perfeitamente equilibrado, foi um dos vencedores do 19º Prêmio Mário Quintana de Literatura. Lançou em 2023 o e-book Guadalupe sobre um tapete de mangas e o livro de contos, Se tudo der errado não volto, pela Caravana.

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