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Ano de 2155 – Morada Abissal – Setor 14

As horas torpedeiam ao redor com a velocidade de um agulhão caçando sua presa. “Quanto tempo ainda me resta como membro do setor catorze” – eu pensava enquanto perambulava meio distraído em minha pequena cabine. 

A vedada janela redonda mostrava um esférico cardume de anchovas. O grupo de peixes rodopiava, enquanto um robalo solitário tentava abocanhar alguns menores dispersos, desalinhados do compasso do grupo. Na natureza não são todos os que têm privilégio de crescer, na Morada Abissal não era diferente.

Só parei de andar pelo recinto quando comecei a reler meu último relatório de avaliação da Academia Primordial. Passava os olhos nas letras, enquanto girava a cadeira até quase ficar tonto. Eu já sabia o que estava escrito, queria mesmo era tentar buscar algo além daquelas palavras, alcançar alguma solução. Entretanto, a conclusão dos meus professores era clara: “avaliado sem recomendações”.

A porta da minha cabine foi aberta em um ritmo lento, pela cadência dos movimentos sabia que só podia ser Maria Eugênia, única que não se incomodaria em bater antes.

– E então? O que te recomendaram? – Maria perguntou enquanto entrava. 

Antes mesmo que pudesse responder, ela se sentou em minha cama revirando alguns papéis próximos.

– Engenheiro. – menti, tentando tirar o relatório da vista. 

–Você realmente conquistou o coração do velho Pedro. Achei que ele odiasse você.

Maria olhou de soslaio para o relatório, disfarçando o interesse, mexendo nos livros que estavam bagunçados pelo cômodo. Pedro era um dos nossos professores avaliadores, um dos mais idosos, era difícil agradá-lo, ele não gostava de ninguém. 

– O que eu posso fazer. Nem ele conseguiu resistir ao meu charme. – Agarrei-a pela cintura. A garota não se incomodou com a intimidade. Sorrateira aproveitou minha distração para pegar o relatório. Folheou o documento indo direto para a conclusão.

– Sem recomendação? – Maria empalideceu, parecia que queria falar mais alguma coisa, mas não saía som de sua boca.

– Não se preocupe, ainda há alternativas, tentarei uma das vagas sobressalentes. Dei uma olhada no que estava disponível, acho que consigo me encaixar em algo.

Tentei esconder ao máximo minha preocupação, não queria ser consolado com a pena dela. Eu já estava repleto de autopiedade, era difícil aguentar minhas próprias preocupações, não queria ter que lidar com as dos outros. É irônico pensar, se uma reprovação escolar como esta acontecesse a algum aluno de cento e cinquenta anos atrás, ele seria apenas castigado por seus pais. Hoje não é mais assim. Inúmeras pessoas passaram por esse meu problema, desde que a Morada Abissal foi instituída após o colapso dos oceanos. Qualquer lamento seria só mais um sussurro no meio de tantos outros, ao longo das décadas em que nosso mundo vive essa realidade submersa, por isso tento não fazer um grande alarde de tudo isso.

Maria conseguiu recuperar a voz:

– Devíamos ter escondido melhor… minha mãe deve ter prejudicado sua situação.  Ela nunca aprovou nossa relação. – A garota lutava com braveza contra as lágrimas que teimavam em escorrer.

– Sua mãe não manda em todos os professores. Foi tudo minha culpa mesmo, não tenho aptidão para nada.

– Não acho que tenha sido sua culpa, Felipe. Ela é a responsável por designar os candidatos aos serviços de escrita. Você tem talento para essas coisas, poderia cuidar de assuntos jurídicos…

– São poucas vagas, Maria. Mesmo que sua mãe fosse com minha cara, não sei se estaria entre os escolhidos. Vou precisar ficar um pouco sozinho nos próximos dias, focar nessa minha situação. Eu te procuro quando eu conseguir me relocar. E se eu não der certo…

Ela já não segurava o choro, agora soluçava com o mesmo desespero dos sufocados em busca de algum ar. Sem falar nada, saiu por onde entrou, talvez por vergonha de seu estado, ou por não saber mais o que dizer. Eu mesmo não sabia ao certo o que ainda sustentava minha calma, possivelmente seria algum grão de esperança de me encaixar em uma das vagas sobressalentes.

Essa seleção insensível não é novidade. A humanidade preparou-se para essa crise aquática há muito tempo, mas selecionou a dedo as vidas que seriam adequadas para essa nova realidade. Mais um privilégio dos poucos abastados que tiveram dinheiro suficiente para financiar sua subsistência subaquática. Assim como algumas dezenas de milhares de pessoas, devo minha existência a algum ancestral rico, que guardou dinheiro suficiente para garantir uma vaga na Morada.

Muita coisa mudou desde então, não tenho mais privilégios como meus ancestrais. Estudei um pouco sobre o quanto o dinheiro era importante antes do colapso, mas isso não faz mais parte da nossa sociedade. Hoje, assim como meus semelhantes, tenho que provar alguma utilidade para a comunidade, por meio de provas técnicas aplicadas ao longo de nossa educação. Não sendo possível, como meu caso, restam poucas alternativas para não ser descartado. Em poucos dias farei quinze anos, a data limite para estar inserido em alguma ocupação. Então, aproveitei o pouco tempo para tentar concorrer como candidato as vagas remanescentes ou mesmo tentar preencher alguma das cotas existenciais destinadas a grupos específicos de pessoas. Não consegui.

Deveria me acostumar com a possibilidade de em poucos dias meu corpo estar boiando à deriva, após me evacuarem pela escotilha vermelha. Provavelmente, a pressão da água deve me matar antes de eu chegar à superfície, se por um milagre eu conseguir submergir vivo, o ar tóxico me mataria em pouco tempo. 

Não queria me despedir de Maria, era doloroso demais, mas eu precisava dizer adeus a meu pai, achei que devia isso a ele. Quando faltavam dois dias para meu aniversário de quinze anos, combinei de o encontrar em uma das varandas envidraçadas, eram locais que podíamos observar a vida marinha através de grandes vidros. Meu pai chegou, já visivelmente abalado, ele não era tolo e sabia qual seria o meu destino. Não era muito velho, tinha seus quarenta e tantos anos, mas sua expressão abatida naquele momento fazia-o ficar com uma aparência mais idosa.

– Eu já sei o que você vai me dizer, Felipe. Não conseguiu se recolocar, certo?

– Não… eu… – Antes que eu pudesse responder fui interrompido.

– Temos dois dias ainda, eu darei um jeito. Vou conversar com o gerente do arquivo, solucionaremos isso da melhor forma. Como anda Maria? Ela deve estar preocupada com você.

Eu não conseguia acreditar nas palavras dele, não tinha vaga no arquivo. Será que ele realmente conseguiria abrir uma vaga, apenas falando com o chefe do setor?

–  Ela está chateada… é de se esperar, também não estou nos meus dias mais felizes.

–  Fique com ela esses dois dias, até o seu aniversário. Solucionarei isso até essa data. Pode confiar no seu pai.

Segui a sugestão de meu pai. Na manhã do meu aniversário, Maria e eu fomos surpreendidos com o bater da porta. Pensei que poderia ser a mãe dela querendo levar a garota embora, ou mesmo seria meu pai, para me dar o último adeus. Uma fagulha bem tímida de esperança ameaçava meus pensamentos: “Poderia ser aceitação em uma das vagas?”

– Entre. A porta está aberta. – disse após me levantar com Maria ao meu lado. Não queria que nos vissem deitados juntos.

Surge o chefe do meu pai, o gerente do setor de arquivo. Minha esperança ruiu naquele momento, ele era o responsável por coletar o depoimento final da pessoa a ser evacuada, ele registraria minhas últimas palavras para a posteridade.

– Você veio arquivar meu último relato? – Não consegui segurar um longo suspiro pelo nariz, nem as lágrimas. Maria me acompanhou, mareando o olhar ao observar meu estado.

– Não, Felipe. Vim avisar que amanhã você começa no arquivo. Temos uma vaga para você. – O homem disse em tom firme, mas um leve incômodo era perceptível em sua fala. Parecia que não era algo que ele queria.

“Será que meu pai chantageou o homem?”, pensei enquanto tentava ler a expressão do chefe do arquivo.

Abracei e beijei Maria de tanta felicidade, as lágrimas tristes converteram-se em pequenos gritos de alegria. Pulávamos e rodopiávamos como crianças em êxtase. Eu viveria, continuaríamos juntos. Por alguns instantes tive a sensação de que nada no mundo poderia me derrubar, após passar por toda essa aflição, toda essa angústia de quase morrer, o que seria capaz de me abalar? Um alerta começa a ecoar na Morada. Luzes vermelhas piscavam e sirenes começaram a apitar. Era o alarme que indicava a abertura da escotilha vermelha. Alguém tinha sido evacuado. Achei estranho, afinal nesse dia eu fui o único a nascer na Morada. Meu pai contou que fiquei um bom tempo sozinho na maternidade. Minha irmã gêmea faleceu no parto junto com minha mãe. A vida inteira meu pai cuidou sozinho de mim.

Maria e eu cessamos a comemoração, assustados com o alerta. Olhei para o chefe do arquivo, ele não parecia surpreso, como se soubesse o que estava acontecendo. Meu peito começou a apertar, a angústia voltou galopante, ainda maior do que antes. Corri em direção da escotilha vermelha, para saber o que estava acontecendo. No caminho tive que passar por uma das varandas envidraçadas. Lá, eu entendi tudo. Vi meu pai, do lado de fora, suas vestes acinzentadas contrastavam com o colorido dos peixes. Ele boiava ao esmo, subindo devagar em direção à superfície. Encostei meu rosto no vidro, batendo as mãos espalmas naquela textura gelada. Sem poder me despedir, apenas observei o corpo subindo até sumir da minha vista.

Arthur Rodriguez é advogado graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado pela PUC-SP e FGV-SP. Entusiasta de assuntos literários. Escritor de prosa e poesia nas horas vagas.

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