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Preferia pegar o ônibus de quinze para seis porque não havia lotação, pela manhã. Nesse dia específico, eu não estava disposto a me levantar. Não queria enfrentar o movimento da cidade e a linearidade da rotina. Geralmente acordava sem dificuldades, aprontava-me e seguia adiante. Mas naquele início da manhã, meus movimentos ao pôr a calça e os sapatos, molhar o rosto e escovar os dentes, pôr a mochila nos ombros, eram letárgicos e dissonantes. Até que enfim superei minha primeira adversidade e fui pegar a condução.

Habituei-me àquelas pessoas sonolentas e sérias no ônibus. Algumas eu já conhecia, até mesmo o motorista e o seu educado “bom dia”. Livrava-me do ruído do motor e das rodas do ônibus, e dos poucos diálogos dos passageiros, com meus fones de ouvido. Lô Borges cantava “Paisagem Na Janela”. Sérgio Sampaio cantava sobre o lugar da poesia ser na calçada, em seguida. Passamos em frente às mesmas fábricas e os mesmos pontos de embarque. O céu começava a ficar mais azul e dissipava a aurora rosa. A letargia fora deixada para trás, o corpo e a mente prontos para mais um dia.

Estava na metade do meu caminho quando uma jovem mulher subiu no ônibus com um menino. Ela sentou-se a dois bancos à minha frente, na mesma fileira, o menino sobre suas coxas. Poderia ser mãe e filho, mas só tinha certeza que ela estava cansada. O menino era o seu oposto. Estava em alerta, mas não falava ou fazia birra, apenas observava tudo ao seu redor, cada detalhe do interior do ônibus, desde a escotilha, até o piso de metal. Olhou para os outros passageiros, sem demorar muito. Observei seus gestos ativos, até que seus olhos me encontraram, e eu virei o rosto.

Não queria ouvir aquela música naquele momento, então passei algumas faixas no meu celular, até me agradar com uma. O menino ainda me olhava, com globos grandes que pareciam sair de suas órbitas. Dei um sorriso, pois gostava de interagir rapidamente com crianças. Adultos já me desagradavam com a sua seriedade, e adolescentes me irritavam com a sua euforia.

O menino virou para frente. Permaneceu sentado e quieto no colo da jovem mulher. Mal desfiz meu sorriso e o menino tornou a me olhar novamente. Sustentei o leve sorriso. Ele estava passível, sério e observador. Comecei a fazer caretas para lhe tirar um riso: um biquinho de pato, uma ponta de língua à mostra, chupadas nas bochechas… E o menino continuava passível, sério e observador. Não sabia incorporar o Jim Carrey em matéria de caretas, então parei e ignorei-o. Peguei meu celular e mexi em coisas desimportantes, como fazemos quando queremos ignorar uma situação embaraçosa, ou não querer interagir, ou apenas por tédio. O menino insistia em olhar para mim. Não vi, mas dava para sentir o seu olhar. 

Cometi o erro de fitá-lo de novo. Ele estava paciente como uma árvore. Parecia forçar os olhos a esbugalharem, mas não. Eram seus olhos, suas pupilas e seu gesto inquisidor de me olhar, como se me conhecesse de algum lugar, de um outro tempo, como se eu fingisse não o conhecer. Talvez me recriminava pelo sorriso leve que dei, as caretas idiotas ou por culpas que sentia até então. Naquele ínterim, pessoas subiam e desciam do ônibus, e o trânsito fluía bem. Não me importava. Tampouco o menino. Ele estava interessado nas minhas reações, no meu olhar, na minha imagem, na minha transparência. O menino me fez questionar como eu estava naquela hora absurda. O que meu rosto transparecia aquele menino ingênuo, estranho e calmo? Eu não era tão bonito ou feio para tamanha atenção. Não era simpático e alegre para ser admirado. Eu não era o sinônimo de fascínio. Apenas sentia inveja de quem conseguia ser. O menino sentia que eu era apenas um animal amargurado.

Menino do diabo, para de me olhar assim! Sou espelho, por acaso? Menino, menino… Não me faça crer que é um deus que deixei de acreditar há muito tempo. Se for, dê-me logo a minha penitência! Conheço meus pecados e a minha imperfeição irreparável. Julgue-me mais do que me condeno. Não faça eu me sentir mais aflito do que já sou! Ele piscou os olhos cinco vezes, no máximo. Aqueles olhos não brilhavam, nem eram sombrios. Eram apenas olhos de criança que ainda veriam coisas, verteriam lágrimas, ficariam cansados e míopes, até serem alimento para a terra. O menino viverá mais do que eu, uma vida que nunca saberei como será. Morrerei bem antes que o menino. E ele será questionado e consolado por outros olhos inquietantes.

Àquela altura, eu já estava entregue à interação, como um marinheiro no canto da sereia. O menino olhava para a frente e depois para mim. A jovem mulher não questionava a atitude do menino. Ela não existia entre nós. A música em meus ouvidos se tornaram um vácuo esquecível. Já não me importava chegar ao meu destino ou voltar para casa. Precisava de um motivo sedutor para continuar tudo que ambicionava, mas que não evitara a sensação de culpa e impotência. Pois morri a pior morte, que era ainda estar vivo e não sentir-se como tal.

O ônibus parou em um ponto com muitas pessoas ali paradas. A jovem mulher levantou-se com o menino nos braços, que deixou de me olhar, mas eu ainda o acompanhava. Nenhuma daquelas pessoas ali paradas subiram no ônibus ou ocuparam o lugar vazio à minha frente. A jovem mulher e o menino se perderam por entre as pessoas. Não os vi mais. Até procurei, olhando pela janela. Posso ter visto sua camisa polo amarela. Mas não sabia ao certo se era uma camisa polo e se era amarela. Apenas lembro dos olhos daquele menino, que levarei para sempre. Ele olha para mim até hoje. Mesmo com a certeza de que já me esqueceu.

Paulo Brás é poeta, autor e compositor de Itaitinga, Ceará, e estudante de Letras Português na Universidade Estadual do Ceará (UECE). Em 2021, lançou seu primeiro livro “Filhos da Vida e Outros Poemas”.

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