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Quarta-feira, seis da manhã, já estou vestida e de pé na cozinha. As fatias de pão estão na torradeira, a água do café fervendo. Abro o armário para pegar uma caneca e me deparo com um cenário de guerra: milhares de formigas correm pela superfície de madeira laqueada, pelas xícaras, copos e taças. Olho em volta e encontro uma trilha na parede. Sigo-as, e chego ao armário de chá; aqui, a situação é ainda pior.

Pego meu confiável spray inseticida, geralmente reservado para as criaturas que eu, até agora, considerava as mais detestáveis — as baratas — e começo a atacar os exércitos invasores. Primeiro no armário de chá, onde a calamidade é maior. Jatos certeiros da substância esbranquiçada atingem minhas inimigas, que caem sem nem se debater. Então, continuo aplicando o veneno na trilha até o outro armário, e repito o ataque.
E, por incrível que pareça, aparecem mais e mais soldadas! Elas parecem brotar da própria tessitura da madeira, mas surgem somente para morrer em seguida; ondas e ondas de pretas e minúsculas formigas que ou não sabem o que as espera, ou, ao ver as companheiras abatidas, entregam-se ao seu seppuku.

Enquanto observo tudo isso, entre raivosa e perplexa, me pergunto de onde vieram. Ontem à noite, quando enxuguei guardei a louça, não tinha umazinha sequer. Uma sensação estranha vai tomando forma dentro de mim, ali entre o peito e o estômago.
Será que estão por todas as paredes, por detrás dos armários, aos poucos roendo (formigas roem?) cimento e porcelanato e madeira até ficarem livres para procurarem por algo mais apetitoso na cozinha? Que já cavaram túneis profundos desde o chão do apartamento térreo até o meu? Estariam atacando outras cozinhas ou é a minha que exerce uma atração especial?

Começo a investigar outros armários: mantimentos, panelas, pratos, potes plásticos? (Será que todo mundo tem um armário de potes plásticos?). Nada. Nem um sinal delas. A ração dos gatos? Intacta. Os livros de receita? Limpos de qualquer sinal invasor.
Suspiro fundo e termino de preparar o café, afinal, o guri não pode se atrasar para a escola, é dia de prova. Lavo duas xícaras, agora cobertas de cadáveres e resto de inseticida, e deixo os armários e enterros para mais tarde.

Enquanto mastigo e engulo mecanicamente, os olhos indo até o armário o tempo todo, me pergunto quando será o próximo ataque planejado. Se é melhor comprar um inseticida mais forte, quem sabe iscas. Se já cavaram tantos túneis no concreto a ponto de comprometer a estrutura do prédio. Se um dia conseguirão unir forças para emergirem em tantos pontos de uma vez que uma só mulher munida com seu spray não dará conta de eliminá-las.

Tenho a sensação ruim de que estamos fadados e de que o mundo, na verdade, já é delas.

Taty Guedes é tradutora e revisora técnica desde 1997. Apaixonada por literatura, também está começando a trabalhar no mercado editorial. Nascida em São Paulo, já morou na Irlanda e nos EUA, e hoje vive em Porto Alegre com seu filho, William, e seus cinco companheiros felinos, onde se arrisco a publicar seus primeiros escritos.

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