2018. Almoço de ano-novo. Era tradição da família da Nenê, a esposa do Ricardo, passar junto o primeiro dia do ano. E tinha revezamento, com escala e tudo. Então todo mundo já sabia pra onde ir a cada ano. Quem recebia nem precisava ficar convidando e quem ia também não precisava confirmar presença. E ninguém dava perdido.
Pela ordem, era a vez da festa na casa da Dona Neuza, a sogra do Ricardo. Como era uma galera de responsa que vinha, até alugaram mesinhas e cadeiras pra acomodar todo mundo legal. Geral na garagem. Com direito a tudo e mais tudo que se come e se bebe pra começar pleno e realizado o novo exercício civil.
E não era aquele esquema chega, come, bebe e vai embora, não! Era chega, come, bebe, puxa moda de viola, bebe, joga truco, comenta futebol, belisca alguma coisinha, bebe de novo, dorme, joga tranca, bebe, levanta um pouquinho pra massa assentar no estômago e sobrar um espacinho pro coração poder continuar batendo, discute política, bebe…
E de repente, assim, sem mais nem menos, escurece: hora da janta! Bora começar tudo de novo! E a coisa ia longe…
Mas, dessa vez, o pessoal precisou ir embora um pouco mais cedo. Na verdade, todo mundo saiu foi correndo, porque armou um temporal daqueles! Pacote completo: ventania de entortar coqueiro, nuvens pesadas, bem baixas, iluminadas pelos flashes dos raios que pareciam rachar o céu, avermelhadas por causa da poeira levantada, trovões de fazer janela balançar. E o aguaceiro desabou com força…
– Ricardo, pelo amor de Deus! Vâmo ligeiro empilhar isso aqui tudo e guardar os carros!
Seu Joaquim, o sogro do Ricardo. Na real, tava falando assim:
– Põe esse Fusca pra dentro agora!
O Bala de Prata, uma relíquia. 1994. Primeira leva do modelo Itamar. Dois carburadores, 1.600 cilindradas. Único dono. Tudo original, até o adesivo da Copauto. Menos de 40.000 quilômetros rodados. Lindo demais! Uma verdadeira jóia!
– O tempo tá muito feio, não da pra arriscar deixar ele na rua! Deus me livre!
E lá foi o Ricardo, arriscar a pele dele – essa podia, né? – pra guardar o precioso. Tá certo que o Ricardo gosta de chuva. Gosta, não: é bicho d’água mesmo! Mas no grau que tava aquele toró, quase arregou…
O embaçado é que sabia que o Seu Joaquim ia ficar sem dormir se o tesouro não estivesse no abrigo, são e salvo. Se não tem jeito, bora enfrentar. Correu, abriu o portão, prendeu na grade com a corrente pra não fechar, correu pro carro, entrou, girou a chave…
– Vixi, agora ferrou!
Sem sinal de vida. Nem acendeu a luz da bateria. Nem fez nhém-nhém-nhém. Estranho demais. O Ricardo não entendeu nada.
– Bateria tá só com seis meses, pegou normal hoje cedo quando tirei da garagem…
– Seu Joaquim vai ter um surto, mas o Prata Lunar – tá assim no documento, acredita? – vai ter que dormir na rua essa noite.
– Até já sei como vou acalmar ele:
– Tranquilo, seu Joaquim! Se alguém quiser levar ele, vai ter que trazer uma bateria…
Bora correr pra dentro. Saiu do carro. Soltou a corrente do portão. Puxou pra fechar. Sabe quando o Indiana Jones passa por aquela frestinha no templo da perdição, no último segundo, antes de ser esmagado pela pedra?
O cachorro passou igualzinho antes do Ricardo fechar o portão. Veio do nada, na velocidade da luz, feito um dos raios que continuavam fazendo a terra tremer. Nem deu pra ver direito. Só percebeu que era pequeno e branco, com umas manchas meio creme, meio caramelo. Entrou pela primeira passagem que viu: a porta da sala.
E aí começou…
– Um cachorrinho!
– É da rua, tá sempre ali perto da Padoca do Guido. Fica pedindo comida pro pessoal da faculdade. Ganha recheio dos salgados, calabresa das pizzas, pedaços de hambúrguer dos lanches. Até o Guido da salsicha e mortadela pra ele de vez em quando…
– Coitadinho! Tá ensopado!
– E tremendo de frio!
– E de medo da tempestade!
– Pega um pano pra secar ele…
Em quinze minutos, já tava sequinho, dormindo estirado numa caixa de papelão, forrada com uma cobertinha bem quentinha, depois da ceia mais farta da vida: churrasquinho, sobrecoxa de frango desossada, pernil assado e até um filezinho de tilápia. Comeu tanto, que não aguentou. Desmaiou. Nem o apavoro com a tormenta foi capaz de manter o bicho acordado.
– Amanhã levo ele lá no Centro de Zoonoses, pra ver se tem identificação.
– Ah, tá! Cê acha mesmo que esse cachorro tem chip, Mari Liz? Fala sério…
– E se tiver? Tem que devolver pro dono, ué…
– E se não tiver dono? Vâmo ficar com ele?
E a Mari Liz, a cunhada do Ricardo, levou mesmo o “entrão” pra ver qual era…
E não é que tinha registro mesmo?
– Chipado, castrado, vacinado! Raça indefinida, com traços de chihuahua.
– Beleza! Pegou o endereço do dono pra gente devolver?
– Gente, vocês não vão acreditar! O rapaz lá da Prefeitura ligou pro dono dele pra avisar que tinha sido encontrado. E o cara falou que não queria ele de volta. Disse que ele da umas piradas, tem uns ataques de agressividade, rosna, late, avança, morde. Deu até uma grampeada no braço dele. Aí explicou que tem filho pequeno, tem receio que ele machuque as crianças…
– Tá explicado mesmo! Deve ter soltado ele na rua…
– E agora? O que é que a gente faz?
– Já fiz! Adotei ele. E o rapaz já alterou o cadastro dele. Tá aqui, ó: Maria Elizabete Nogueira Francisco. Agora eu sou a tutora dele…
– E ele? Tem nome?
– O moço falou que tinha, mas não contou. Disse pra gente escolher outro. Pra ele recomeçar a vidinha dele sem trazer nada do passado…
Então o Ricardo cravou:
– Vai ser Mike! Mike Wazowski. O “zoiudinho” da mamãe, do filme Monstros S/A.
E foi batizado por unanimidade. Nada mais lógico.
– Tem mais olho do que cachorro aí! Pensa numas biroca gigante que pulam pra fora das órbita!
Gargalhadas interrompidas pelo ronco do Fusca. Finalmente de volta pro aconchego. Depois de horas intermináveis, de pura paúra, tudo resolvido. Tudo acabando muito bem.
– Deu carga na bateria, seu Joaquim?
– Vocês não vão acreditar! Tava ali na janela olhando pra ele. Ô, desgosto! Ficou na rua a noite inteira, tomou aquela chuva toda. Cismei de experimentar, fui lá, girei a chave. E pegou! De primeira!
– Ah, tá de brincadeira!
– Então a pane do Fusca foi só pro Mike poder entrar…
– Então era pra gente ficar com ele mesmo…
É o puro creme do inexplicável: sabe quanto tempo durou a bateria do Fusca? Só foi trocada em abril de 2022! Depois de quatro anos do apagão! Acredite se quiser…
Já o Mike…
A bipolaridade aguda permanece com manifestações recorrentes. Nos picos de euforia, exibe um de seus melhores talentos: alongamento! Mantém o tronco reto e estica ao máximo as pernas traseiras, ora a direita, ora a esquerda, demonstrando toda sua elasticidade.
E tem uma variação, com altíssimo grau de complexidade: deitado, espicha as pernas traseiras, que ficam rígidas, inflexíveis. E com as dianteiras, aplica uma força no solo que acaba tracionando todo o corpo, resultando em um movimento circular perfeito. A Nenê chama de relógio!
Mas, cuidado, porque subitamente pode azedar: rosna, late, avança e morde. Principalmente se estiver no sofá, tomando conta da Nenê e alguém se aproximar. É que ele acabou escolhendo ela pra ser a mãe dele…
Também pega ar se estiver na cama com uma das meninas e alguém entrar no quarto. Vira uma fera raivosa. E tem uma abertura de mandíbula que parece a de um tubarão branco. Impossível acreditar que uma boquinha aparentemente inofensiva seja capaz de tamanha expansão. Realmente assustador! E da resultado: o negócio é sair de perto pro “cidadão” acalmar e voltar a dormir.
Agora, quer ver o bicho pegar de vez? Chega em casa de boné e joga as mãos pra cima: é o despertar de Godzilla! Mesma reação se alguém chegar com uma vassoura pro lado do maluco. E vale pra rodinho também. Tem dia que é uma vida pra passar pano na casa. Só isolando o “trem” em algum quarto…
Mas tudo tem explicação. E aqui as peças se encaixam com facilidade. Provavelmente sofria maus-tratos, de alguém que usava chapéu e batia de vassoura, de cima pra baixo. Então é só acionar um dos gatilhos pro mecanismo de autoproteção explodir. E o que se tem por um ataque de fúria não passa de ação de defesa pra evitar a repetição do trauma.
De outro lado, temos os avanços. O tempo. A convivência com pessoas que alimentam, dão atenção, carinho e afeto, cuidam da saúde e higiene – se bem que cada banho ainda continue sendo uma batalha – acabam provocando mudanças nas referências que o bicho-cão tem do bicho-homem.
Hoje o Mike permite, ainda que com certo receio, que alguém o cubra com uma manta nos dias de frio. Deixar colocar roupinha já é demais. Ainda não alcançou esse nível de concessão. Prefere enfrentar as intempéries no modo raiz mesmo. Mas colo, que era algo impensável, já se tornou hábito diário.
E vâmo combinar: não é nada difícil compreender que afago é coisa boa. E que basta pedir mais pra continuar recebendo. Então, quando a Nenê tá com ele no colo e começa a mexer no celular, imediatamente o espertinho usa a pata pra chamar a atenção de volta pra ele, cutucando a mamãe.
É o que o Ricardo diz:
– De bobo, esse aí só tem os donos!
Ah, tava quase esquecendo da maior qualidade dessa peça: previsão do tempo! Mais objetivamente, precisão pra anunciar chuva. Com horas de antecedência. O tempo pode tá firme, céu limpo, sol de rachar mamona. Se o Mike estiver escondido no vãozinho entre o sofá e a parede da sala, tremendo, com dois palmos de língua pra fora da boca e não sair dali de jeito nenhum, nem pra comer nem pra passear, pode rever seus planos: vai cair água, com certeza!
É bem aquela coisa: de um jeito ou de outro, a gente sempre sai de todas as tempestades, mas algumas tempestades nunca saem da gente…
Cidmar Rosseti, 1975, de Presidente Prudente-SP. Gosta de contemplar e trocar ideia com o sol, a lua, as estrelas, o mar, livros, pinturas, filmes, peças e gente do bem! Gosta de um bom soul, de um velho blues e do bom e velho rock’n’roll! Torce pro São Paulo, pros Packers e pros Bulls! E pra todo mundo ser feliz, pleno e realizado! Começou a escrever durante a pandemia, pra contar umas histórias e registrar umas ideias. Virou blogueiro: Sextou, Textou! (www.sextoutextou.blogspot.com). Toda sexta tem um texto pra família, pros amigos e pra quem mais quiser chegar!