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22:40h da noite de sexta-feira.

Debora, moça humilde e sorridente, mora em um primeiro andar, cedido pela família, com seu pequeno filho. Como de costume, deixa seu menino dormindo e sai mais uma vez na varanda fria, porém dessa vez ela abraça o vento frio que esvoaça seus cabelos claros e ressecados, sua mente viaja no céu de nuvens escuras que vez ou outra cobrem a lua cheia. “Enxergar a beleza da natureza é tão incrível aos olhos”, pensa admirando os detalhes que encontra no céu azul noturno. Noite fria e silenciosa, vento forte e pensamentos barulhentos. 

Serve-se generosamente de uma taça de vinho, companheiro que compra no mercadinho às escondidas, bebericando, sua pele esfria e seu corpo arrepia ao debruçar-se sobre o parapeito. Seus sentimentos afloram e em questão de segundos olha para baixo, imaginando como poderia ser uma queda desse andar.

“Talvez, possa cair e bater no muro, despencar de cabeça no chão duro, ou então quebrar o pescoço. Mas existem tantos fios de energia aqui perto, posso acabar ficando presa neles e morrer no choque? Isso se tiver sorte, pois posso acabar ficando viva caso seja socorrida.” Conversa sozinha olhando ao redor enquanto mexe a taça entre seus dedos.

Outrora acreditava estar 100% curada, das marcas, das dores e traumas que vem carregando, sim, eles nunca foram realmente embora, mesmo com todos os remédios do mundo que a deixassem sem sentimentos, sem sentidos. Eles apenas a faziam se sentir vazia, porém não apagavam sua mente. Ela também não acreditava que todas as memórias pudessem um dia sumir, como num passe de mágica, e tudo ser como se nenhum de seus monstros tivessem existido. Afinal, o lembrete da sua noite macabra estava ali bem perto, de pele clara, cabelos pretos e olhos castanhos, com pequenas mãos roliças. 

Ao lembrar seus motivos de delírio, sua mente tropeça novamente em memórias difíceis de superar. Imediatamente, enoja-se de seu corpo, o buraco em seu peito cresce mais uma vez, se vê abraçando o peito com seu braço direito, apertando com todas as suas forças a manga de sua camisa preta. As imagens… ela luta para empurrar todas de volta para aquele sótão escuro e molhado, de onde nunca deveriam sair. Ela bebe o líquido vermelho, todo de uma vez, para limpar a repulsa, pragueja a lei, a vida, a noite e o destino.

O sangue com fervor pulsa, ao LEMBRETE DE NÃO TER TIDO DOMÍNIO SOBRE SEU PRÓPRIO CORPO, a violação de seu espaço por um mostro nojento, o medo, a dor, o desejo de morte, as escolhas que não foram suas e a forma como sua família a julgaria se tivesse dito NÃO às consequências daquela vida.

— Ele deveria ter me matado enquanto podia, por que ele não fez isso? ― geme entre dentes. 

Essa noite em específico, deixou-se levar por seus demônios, ela não chegou a se embriagar com o vinho, a realidade é que ela não precisava de muito para inebriar-se com sua dor. Seus questionamentos incharam, cresceram e se multiplicaram. Era doloroso demais não conseguir oferecer carinho e amor a quem a via como um mundo gigante e feliz. Ela não suportou mais o estufamento de seu interior, deixou a taça de lado e se sentou no parapeito, com seus pés descalços e a alma em chamas. Abraçou-se mais uma vez, buscando a leveza que já teve um dia, deixou-se levar pelo vento e abandonou sua agonia.

S. S. Santos é natural de São Paulo – SP, mudou-se com seus pais aos 10 anos de idade e hoje vive em uma pequena cidade no interior de Pernambuco (Lagoa do Carro). Formada em pedagogia, faz pós-graduação em Educação Especial e Psicomotricidade, tem participação em diversas antologias poéticas e conta com dois livros independentes publicados.

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