O país estava dividido, sem chance de diálogo. Até porque a gritaria era tamanha que não dava para entender o que o outro lado dizia. A multidão aguardava o resultado a um passo do tumulto que explodiria quando o vencedor fosse conhecido. Eu tinha apenas oito anos, mas já havia me posicionado. Estava à direita, com minha mãe, numa ponta do sofá. Na outra, meu irmão mais velho fazia par com meu pai. Sentado na poltrona preguiçosa, pés no banquinho, o doutor Olímpio expunha pela milésima vez os seus argumentos. “É claro que ele vai ganhar”, dizia hipnotizado pela TV, luxo de classe média naquela época. “É verdadeiro, forte, emocional, sem essas gracinhas perfumadas!”. Dona Marilice rebatia na lata. “Gracinha perfumada, essa é nova! Só por que ele é jovem e lindo não quer dizer que não saiba se posicionar”. Marco e eu ouvíamos calados as alegações da torcida. Eu, chupando uma bala Chita atrás da outra, açúcar-calmante; ele, arrancando com os dentes a cutícula do polegar ferido. De repente, o silêncio. Absoluto. Na sala e na tela. “O júri e a TV Record decidiram dividir o primeiro prêmio” anunciou o apresentador. “A Banda e Disparada são as campeãs do II Festival de Música Popular Brasileira!”. Eu fui a primeira a pular, gritando chico, chico! Abraços, beijos. Consenso nacional. Talvez o último, desde então. Meu pai foi abrir o espumante, minha mãe foi buscar os papos de anjo, comemoração em família. Porém, a imagem mais forte daquela noite de 1966, a que eu revisitei muitas e muitas vezes, foi a do meu irmão, em transe, cantando com Jair Rodrigues.
Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
No Festival seguinte, papai, mamãe e eu nem piscávamos diante da televisão, tentando localizar o rosto do Marco entre tantos Marcos na plateia. O primogênito estava com dezesseis anos, no primeiro ano do clássico, só tirava notas boas e, por isso, nossos pais deixaram que ele fosse a uma eliminatória com o grupo de teatro da escola. Mal sabiam que a turma tinha falsificado os documentos e aumentado a idade para tentar acompanhar o espetáculo. Assim, com uma traquinagem aqui, uma mentirinha ali, Marco foi driblando a marcação cerrada do doutor Olímpio que não queria o filho metido no grêmio estudantil.
“Fala que que me viu na biblioteca, por favor, maninha!”, ele me pediu uma vez, eu lembro. Ótimo aluno, carismático, circulava com sucesso entre professores e colegas. No terceiro ano, foi eleito representante dos alunos. Eu fiquei toda prosa, meu irmão era a estrela do colégio! Já meus pais, claro, odiaram. A gritaria dominou a casa na inscrição para o vestibular. Brigas, súplicas, e Marco acabou aceitando trocar filosofia por jornalismo, curso recém-criado na USP e com melhores perspectivas de emprego.
Chegou à faculdade como líder secundarista e logo estava fazendo freelancers para publicações que sempre acabavam na mira dos censores. Foi morar com amigos, raramente aparecia nos almoços de domingo em casa. Na última vez em que foi, avisou que ia viajar, fazer matéria sobre a estrada da selva, a Transamazônica. Meus pais ainda tentaram argumentar, mas ele mudou de assunto. E desapareceu.
Na semana do meu aniversário de treze anos, eu estava excitadíssima. A festa seria no sábado à tarde, um bailinho de garagem com rock e música lenta pra gente poder chegar mais perto dos meninos! Nas fotos, em meio aos sorrisos de aparelho nos dentes, a tristeza do doutor e da esposa chamava a atenção. Na segunda-feira, a mamãe foi ao cabeleireiro, tinha ficado grisalha de uma hora para outra. E meu pai só não enlouqueceu, porque um cliente, coronel do exército, garantiu que “o garoto morreu em combate, não sofreu, foi disparo de arma mesmo”. Mais de vinte anos depois, o corpo do Marco foi exumado num cemitério de indigentes e transferido para o jazigo da família. E eu finalmente aceitei. Meu irmão querido seguiu seu coração. Na placa, embaixo do nome dele, pedi para gravar:
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme, braço forte
De um reino que não tem rei
Autora do thriller A Vingança é Verde Esmeralda, do romance policial A Estrela do Cerrado e de contos publicados em coletâneas, Renata De Luca é jornalista com pós-graduação em roteiro para cinema e TV e especialização em educação a distância. Trabalhou por quarenta anos na grande imprensa e agora escreve ficção. Mora em São Paulo, sua cidade natal.