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Intermitência na avenida Espanha

Quando me dei conta que o meu
coração batia forte como um verso,
olhei pro alto e contemplei o céu desta
avenida Espanha além das copas –
compreendendo a finitude não como um
acaso. A infinitude alarma contra a pretensão,
a pretensão de ignorar alarmes,
todo alarme, alarme
atrás de alarme.

Eu durmo ao lado de estrangeiros que me
falam das araras alvorando o céu.
Araras alvorando o céu de manhã cedo enquanto eu não
desperto. Os estrangeiros, nus, assistem da janela deste
quinto andar às sombras repintando o asfalto da avenida
Espanha. A cor da arara do meu sonho é som, só.

Quando eu me dei conta que o meu
coração batia forte como um verso,
mastiguei um lápis entre as pontas dos meus
dedos embriagados de agonia. A infinitude
não como um acaso, nem como um consolo.
Quem já andou pelo silêncio noiteadentro de uma rua escura
sabe o gozo de escutar murmúrios residenciais.

É na avenida Espanha que o meu corpo cai a cada vez,
a cada vez que eu me despenco da janela deste quinto
andar. Do quinto andar, de onde eu assisto à inspiração
dançando alucinógena por entre os fios de telefone.

Eu durmo ao lado de estrangeiros que
capturam as araras quaras e me presenteiam.
Todo dia araras quaras me despertam.

Quando eu me dei conta que o meu
coração batia forte como um verso,
engoli vinte comprimidos de papel e
me deitei.

Deitei-me
em explosão nesta calçada da avenida Espanha,
irrevogavelmente,
são.


Noturno sobre a calha dos rios Pardo e Tamanduá

Fosse esse som o
som de uma avenida
percorrida vida a
vida na totalidade
expressa e asfáltica dos
seus sentidos, esse
som me embalaria.

Eu ouviria no rolar de
cada pista a minha
história na voz de
borracha preta dos
pneus a cem.

Fosse esse som o
som de uma avenida
percorrida vida a
vida na totalidade
expressa e paradora de
seus sentidos, esse
som me embalaria:
eu dormiria plano e
asfáltico, sob os pneus.

Eu dormiria,
mas o som é de uma ferrovia e os
trens transportam suco de laranja.


Fazenda Dalva

Será que este monstro tem pai?
Este arrepio que me percorre frente a uma
quoticonversa sobre amar e ser amado à nova moda.
De onde vem este arrepio? – fosse raio, fulminasse
meu físico, me transformasse em espetáculo.

Quem ensinou os homens a se tratarem assim?
Está escrito? Saiu nas revistas da moda, que convém
lamber o tóxico para que o coração bata correto?
Não vejo ninguém numa mesa de café.
Antes eu escrevesse nas paredes, a elas que me dirijo.

Cigarro, cigarro, cigarro, estarro – vergonhas de
fumaça, camufladas, falas infladas, flamas.
“Quando eu for presidente…” vigirão então a
não-monogamia, o alcaloide, os cristais, os santinhos –
haverá lei? Quem sabe o que é lei não sabe de nada.

Vou dar uma volta de interno.
Vou dar uma volta de interno.
Vou dar uma volta de interno.
Vou dar uma volta no inferno.
Vou dar uma volta de interno.
Vou dar uma volta de interno.

Libertas quæ sera tamen.
But it’s too late baby,
now it’s too late.


24°C, 18/10/2022, 12h46

lá vem, jabuti, por entre as jabuticabas
podres, remexendo o uso da morte
em sementes abortadas.

chove,

chove. quanto tempo sem
este cheiro (((específico))) do quintal molhado;
como voltar dez anos, quando ainda havia
três — hoje só há uma, e, das que há três,
as flores tapeceiam o portão.

varanda escura e anti-natural;
tirou do quintal o teto, de sinuosos
valões, cor de céu onde as árvores
se tocam. lua havia.

tempos muitos não se soube que era gato,
dada a brabeza da bisavó desta aqui:
calhou de amedrontar e inventar alergia;
hoje dormem na cama.

jabuti já sumiu já no terreiro,
e é melhor parar o verbo porque,
agora, este verbo é que revira mortes.

Arthur Ledine nasceu em Ribeirão Preto (SP), onde reside, mas há divergências quanto à data exata. Publicou dois livros de poemas, “O livro de Parlós Videira Malta” (2022) e “O barro onde o jabuti se deita” (2023), pela editora Libertinagem; além de poemas esparsos em antologias e revistas.

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