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Um homem grita

Um homem grita com uma mulher.
Um homem grita.
Um homem grita com uma mulher.
Homens assistem aos gritos do homem com uma
mulher.
Mulheres são chamadas pra falar com uma mulher
porque o homem que grita com a mulher não quer
ouvir a voz da mulher.
A mulher não grita com o homem.
Ao mesmo tempo que o homem não para de gritar
com uma mulher.
Homens insistem em gritar com uma mulher.
A mulher quer falar com o homem.
Mas o homem não quer ouvir a voz da mulher.
Todos assistem
e o homem continua a gritar com uma mulher.
Uma mulher defende o homem que grita com uma
mulher.
Um rapaz olha a mulher que está sendo gritada pelo
homem e fica vermelho.
O homem continua a gritar com uma mulher.
A mulher tenta falar.
Mas o homem só quer gritar com uma mulher.
O homem sai.
A mulher fica.
A outra mulher sai.
O rapaz fica.
O rapaz sai.
Uma mulher sai.
Uma mulher chora.
Uma mulher limpa o choro.
Uma mulher dirige o seu carro e na multisonoridade
da cidade, ela continua ouvindo os gritos do
homem que grita com uma mulher.


Até quando?

até quando as desculpas virão primeiro?
até quando?

até quando culpar a vítima será a melhor resposta?
a melhor saída,
o melhor álibi,
a melhor desculpa,
a melhor forma de se abster de olhar para a
sua responsabilidade perante os fatos?

até quando?

até quando o desleixo, o preconceito?
o preconceito, o preconceito,
o preconceito?
até quando a desvalorização, a depreciação,
a violência, a fala alta, o grito
e o punho em riste?

até quando o “eu estava nervoso”?
até quando o “você que é culpada”?
o “você é isso, aquilo e mais aquilo” e
“eu já não mandei você não abrir mais essa boca”?

por hora,
você até pode conseguir calar a minha boca,
mas consegue calar a alma?
calar o cérebro?
calar os dedos gritando livros,
escancarando dores,
denunciando fatos?

até quando você me cala?
até quando?


As palavras

as palavras
que me salvam a todo momento
atravessam a minha vida
a cada instante
e me carregam
quando desencontrada
em tempo e espaço
no colo da gramática e dos meus pensamentos

as palavras
que me abraçam
quando me sinto fraca,
duvidosa,
sem coragem

as palavras
que flertam comigo
no salão profano
da minha mente

as palavras
que me tiram para uma valsa,
um funk
ou um Gilberto Gil na varanda

as palavras que transam
a minha inação com os meus desejos secretos,
as palavras
que escondidas em paredes acinzentadas de pudores
cruzam os meus versos dionisíacos
com a minha racionalidade

as palavras
predadoras,
públicas
e profanas

as palavras
quentes,
esgueiras
e abissais

as palavras,
as minhas palavras.


Modo automático

Eu não tô vendo quem tá morrendo
Eu não tô vendo quem tá vivendo
A TV anda desligada
e eu não sei mais nada do mundo

Eu já não participo mais dos assuntos da casa
Há muito que eu só tô tentando existir
Eu sumi de todos os lugares
E os meus amigos sumiram daqui

Tô apenas respirando e fazendo coisas disfuncionais
A vida está automática
Vou sobrevivendo aos acontecimentos
sem nem mesmo perceber se eles estão de fato acontecendo

Eu tô
Eu só tô
Não sei o que
Mas eu tô

Eu já não ligo o rádio do carro
Eu já não entro mais em engarrafamentos
Eu já não enlouqueço mais com os vinhos velhos da família
Eu tô pirando,
Eu tô pirando

Eu tô batendo a cabeça nas paredes do meu quarto
Violentando as minhas opiniões nas redes sociais
Já detonei com todos os meus pensamentos
A minha solidão é crônica
Eu sofro com a estupidez social

essa falta de existência cotidiana
essa falta de barulho
do microondas
do chuveiro elétrico
do secador
do aspirador
da tv
do spotify ritmando a vida em dias de domingo
dos nossos ruídos de prazer e brigas dentro dessas paredes
essa falta
essa, sim
está me matando

Renata Giriolli é atriz e mais recentemente lançou seu livro de poesias “Sobredor”. Atualmente, faz parte de coletivos literários femininos, participa de feiras, eventos e saraus e está finalizando mais duas obras.

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