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O paciente acorda numa sala quase que toda em branco, deitado num sofá branco, e usando roupas pretas, ele senta e vê na sua frente um homem sentado numa poltrona, tanto o homem quanto o objeto exalavam uma postura de alta classe. E de pernas cruzadas, o homem diz:

— Finalmente acordou, hein?

— Onde é que eu tô, doutor? — Pergunta o paciente, coçando os olhos e balançando a cabeça.

— Eu chamo isso aqui de sala branca. Só porque ela é uma sala que… está toda pintada de branco, eu não sou muito criativo então não consigo pensar em outro nome… — o doutor se recompõe e volta a dizer — mas o que você deve se perguntar é o porquê está aqui.

— Sabe de uma coisa? — Pergunta o paciente, apontando para o doutor e assentindo com a cabeça.

— Eu tô muito surpreso e feliz de você ser preto.

— Pensou que isso aqui fosse profissão de branco, né?

— Pois é, e não é como quando eu vejo um advogado preto ou um juiz preto e aí você pensa “que foda, os pretos assumindo cargos importantes”, mas quando vejo vocês eu só penso que é uma seleção natural pra brancos que gostam de ouvir os problemas dos outros, tipo… fofoca socialmente aceita, sabe?

O paciente ri  junto ao doutor, que diz:

— E será que você não pensa isso porque pessoas como você — Diz o doutor apontando para a própria pele. — aprendem que devem não demonstrar o que sentem para não preocupar quem ama e que ser o mais frio possível te auxilia a lidar melhor com as decepções?

O paciente para de rir devagar e virando a cabeça para o lado, diz:

— Já não fui muito com a sua cara.

Os dois voltam a rir em conjunto, o doutor descruza as pernas e apoia os cotovelos nos joelhos:

— E por que você está aqui?

Após um tempo em silêncio, encolhendo os ombros, o paciente respondeu:

— Eu não sei. Eu morri?

O doutor voltou suas costas para a poltrona e respondeu rindo:

— Não, não, não. Você não morreu, mas se continuar do jeito que está, vai voltar para cá muitas e muitas vezes. 

O paciente suspirou fundo e jogou seu corpo sobre o sofá, olhando para o teto e vendo uma grande imagem de São Jorge em forma de desenho, depois, ele olhou para o chão e viu uma grande foice em forma de tapete que cobria toda a sala.

— Eu sou tão extremo assim nos meus pensamentos?

— Talvez. Você se acha muito fechado?

— Eu acho que você tá querendo saber demais. — Disse o paciente, cruzando os braços. 

— O que acha das pessoas?

— Eu acho que elas têm dois olhos, duas pernas, quer dizer… algumas não têm exatamente duas, mas…

O doutor se levantou e com a maior naturalidade expressada em seu ser, foi até o paciente e deu-lhe um tapa, depois voltou a sentar. O paciente levou a mão ao rosto, e ainda tentando absorver o que tinha acontecido, perguntou:

— Você pode fazer isso?

— Nos meus dias de trabalho convencionais, não, mas como sou um fruto da sua cabeça, sim.

— Eu tô sem moral, né? — Perguntou o paciente, virando a cabeça para o cachorro puggy, que estava no braço do sofá.

— Au! — Respondeu o cachorro.

— Mas então, o que você acha das pessoas?

— Eu não tenho o que achar, doutor! As pessoas são o que são e comigo nunca foram boas, o senhor acha que essas feridas se fizeram sozinhas? Eu mesmo aprendi a cicatrizar, minha mãe já chegou a perguntar o que tinha acontecido e eu só respirei fundo e disse não ter sido nada e sabe por quê? Porque tô tentando não perturbar mais ainda a vida dela enquanto que na minha mente só o que vem é perturbação e… pensamentos intrusivos — O paciente respirou fundo, — E no fim, todos que ajudei, estendi a mão, ou… só fui “bonzinho demais” ou só pensei que fosse meu amigo hoje carrega uma parte do meu corpo. A mente, o… coração, o próprio braço… e me olham de cima como se fossem melhores do que eu…

— E o que você fez depois disso?

O paciente riu.

— Só escrevi, acredita? Tão patético, como… como levar uma surra e você refletir sobre o quão ruim foi aquilo.

— Você acha isso tão patético assim?

O paciente parou para pensar um pouco e disse:

— Sem querer ofender, tá? Talvez eu tenha percebido que talvez seja exatamente isso que você faz para com as pessoas.

— Tudo bem, tudo bem, sem problemas. Mas… você falou de escrever, não acha que isso seja um dom ou um resultado do seu esforço? Nem todo mundo consegue escrever ou ter essa sensibilidade.

— Eu, talentoso? Não, não, doutor, talentoso é quem toca piano, uma mãe que ainda tem tempo de brincar com o filho depois de um dia de trabalho repleto de humilhação. Um favelado que nem eu passar numa faculdade pública, um pai que se compromete a cuidar do filho, eu? Eu talvez só… não frequente tanto a terapia. — Disse o paciente, virando a cara.

— E o que você deseja para essas pessoas que você fala?

— Eu desejo ver o resultado. — O paciente assentiu com a cabeça. — O resultado que eu vou ter com esse ódio que eu carrego, esse… rancor, essa amargura, que eu carrego e deposito.

— Então você carrega tudo isso?

— Eu não sei se o senhor concorda, mas isso ajuda. Ajuda a me prevenir, eu me sinto como se tivesse uma armadura.

— Como esse homem acima de nós? — Perguntou o doutor, apontando para o teto. 

— Não. — O paciente riu. — Ele é melhor do que eu, mas nesse… plano que a gente tá, é melhor assim.

— E você não acha que isso pode te fazer algum mal?

— O pior é que eu acho que sim, talvez seja isso que faça eu não dormir direito, fechar a cara pro mundo, mas fazer o quê? Como ser diferente quando você é alvo desde o princípio? Enquanto que tem gente que já nasce com a coroa na cabeça, e não contente com isso tenta apagar meu povo, demonizar a gente, dizer que o nosso amor não é… legítimo. Depois de ver e viver muita coisa, você pensa diferente, doutor.

O paciente parou de falar ao olhar para seus braços e ver o sangue que saía, tanto deles , quanto das mãos, das costas…

— O que é isso? — Perguntou o paciente.

— Suas feridas. — Respondeu o doutor.

Não, não…

O paciente fechou os olhos , respirou fundo e o sangue foi voltando para o seu corpo, sem ao menos manchá-lo.

— O que você está fazendo? 

— Curando minhas feridas.

— Não, não está curando. Se eu tocar, ainda dói. — Disse o doutor, levantando-se e encostando seu dedo no braço do paciente. 

— Mas sabe? Eu estou impressionado.

— Com o quê?

— Você passou pela parte mais difícil, está indo muito bem.

Ao ver o doutor se aproximar, o paciente foi dizendo:

— Não vai me dar outro tapa, né? Porque eu posso denunciar e não vai ser legal…

Ele parou de falar ao receber um abraço, que o paralisou por um tempo até retribuir, e quando o fez, voltou a sangrar, dessa vez, também pelo olho esquerdo, o líquido vermelho encostando na camisa social azul clara do doutor, que saiu do abraço e olhou, agachado, para o paciente.

— Acho que podemos ir mais fundo. 

— Obrigado, doutor, mas eu acho que isso pode ter saído um pouco estranho e…

O doutor estalou os dedos, e tudo se foi. O paciente acordou novamente, na mesma sala branca, dessa vez, o teto continha a escultura do purgatório bíblico, e o chão tinha a grande medalha de São Bento.

— E os relacionamentos, como é que tão?

O paciente se virou e viu seu próprio eu, com os braços encostados na parte de trás do sofá. 

O paciente riu novamente.

— Você sabe como é, se empolga com promessas que não pode cumprir, palavras de afeto, que no fim são vazias… gostam do que você faz, não do que você é.

— Mas você é bonito, né? Uma mistura de etnia engraçada, é até difícil definir o que você é, só sei que é bonito. — Seu outro eu começou a andar pela sala branca. — Esforçado, tem a boca grande, a altura não favorece muito, mas você é presença, tem uma escrita maneira, por mais que ultimamente você não tem escrito muita coisa legal…

O paciente respirou fundo e disse:

— Tem como fazer esse cara parar de falar? — Disse o paciente, virando seu olhar para a poltrona e vendo o doutor.

— Talvez se você olhar mais para si, funcione.

— Aham, muito legal, doutor. Mas… afinal de contas, eu morri ou não morri?

O doutor olhou para o outro eu do paciente, e o outro eu olhou para o paciente e disse:

— Não vai ser hoje que a gente vai conhecer o lugar que tá no teto.

— Eu tô na sacada, né?

O outro eu e o doutor se olharam, e os dois olharam para o paciente, que viu os dois estalarem os dedos e tudo se foi. O paciente acordou novamente, dessa vez na sacada cinza de sua casa, no clarão da noite, ele via o imponente brilho da cidade e ouvia o estrondoso barulho dos automóveis. 

Olhou para seus braços, não viu sangue, mas sim as mesmas feridas de sempre, seus olhos estavam avermelhados, e quando tirou os olhos da paisagem viu a quantidade de cerveja que estava ao seu redor. Ele demorou para perceber que o seu celular estava vibrando no seu bolso, e quando ele pegou o aparelho, viu a notificação: “Mãe💜16 chamadas perdidas”

Ele decidiu retornar a ligação e ouviu a voz da mulher que o criou:

— Meu filho, pelo amor de Deus, você conhece uma coisa chamada “carregador”? Ou então “ouvido”? Faz séculos sem fim que eu tento falar com você e você não atende esta droga de celular!

— Mãe, eu posso… ficar com a senhora hoje?

Após um minuto de silêncio:

— É claro que você pode, meu filho. Aconteceu alguma coisa?

— Acho que… olhei mais pra mim mesmo. E isso é difícil. 

Nícolas Indígena é poeta, escritor, compositor, músico, capoeirista e graduando em Letras e buscar trazer em suas letras um ritmo questionador e oriundo das vozes da favela.

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