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Era final do segundo semestre da faculdade. O cânone literário sempre me instigou,
teceu minha consciência com os detalhes mais sutis, seja pelo simbolismo
costurado nas palavras em versos pródigos e prosas clássicas, ou sugestão de
imaginários que se experienciam ao ler histórias, esses compósitos de austeridade
cultural. Não perderia a chance de me aprofundar mais em estudos literários, amigar
às manias de Drummond ou sentir a carga solitária de Clarice.

O sol penetrava em meu semblante preocupado e ansioso. O assento da sala era
cômodo, se harmonizava a minha zona de conforto à espreita da aula repleta de
convencionalidades. Lembro da moça que sentou à mesa do centro, Adriana
Alexandrino, professora de Literatura Brasileira Contemporânea. Olhou
minuciosamente para as criaturas sonolentas que habitavam a sala. Quando
desselou os lábios, ouvi quase sussurros quando pronunciou Conceição Evaristo.
Adriana disse que estudaríamos a escrevivência. Conceito ontológico umedecido de
liberdade. Neste instante, percebi mundo alheio ao meu contexto de vida ínfimo;
larguei de Drummond e Clarice e me converti à tecitura literária de Conceição.

As obras interligam sensibilidade e sutileza; em cada linha escrita, percebe-se
entranhamento de ideias e construção pragmática, assemelhada à oralidade, em
referência à vida em tom costumeiro, que se compartilha objeto real posicionado
numa ambiência espontânea relacionada ao expor-se sobre papel. Escreviver é
“colocar-se na posição”, compor imaginários a partir da memória que se funde no
presente; não se dedica ao processo descritivo, mas ao de formar matéria, algo
elementar que represente personalidade e conteúdo.

Em Insubmissas lágrimas de mulheres, são levantados segmentos que contam estórias
de mulheres brasileiras retratadas em ecléticos contextos de vida; há embocadura
que acolhe cada um, e essas histórias se emaranham num mesmo ritual de
submissão às reviravoltas. A narradora finda cumplicidade em relação às histórias
compartilhadas das personagens. Deduz-se um eixo intradiegético, em que a
personagem assume responsabilidade pela voz da narradora, e o contexto
elaborado partindo deste movimento explora o vácuo entre ficção e mundo real, em
que algo se esvai e a imaginação aflora para complementar lembranças e aludir
novas interpretações às estórias. A exploração da não-linearidade, do espaço e
tempo psicológicos amalgamado entre passado, presente e futuro, que se
concretiza no cotidiano dos indivíduos quanto aos resgates de memórias, aos quais
inspiram justiça, luta e abstenção do mito da democracia racial no Brasil.

Conceição Evaristo apresenta o eu com referenciação da dêixis, constrói identidade
a partir do pronome enunciativo “minha”, que entrelaça as subjetividades da
personagem, do narrador e da própria Conceição em junção à ambiência exterior
(realidade) referente ao mundo objetivo. Direciona a ótica, o olhar subjetivo, ao
espaço de referenciação o singular da vida às improbabilidades dos sujeitos
construídos. É possível esclarecer a utilização da mímeses em contraponto à
representação da realidade. Pela característica basilar de referir o corpo em seus
textos para tangibilizar a obra e submeter leitura sinestésica, Conceição preenche
cada verso com traços de humanidade, compõe performances que introduzem
elementos naturais da vida, do (sobre)viver, como a água, o choro, o gozo, o prazer,
correspondentes às sensações de pertencimento na história. A imitação da
realidade gera aspecto identificativo e a chance de se refletir com maior entorno
(pertença, por assim dizer) aos acontecimentos.

O antagonismo à atividade representativa é compreendido por haver limitações ao
retratar coisas, tanto que é exemplificado pelo idealismo platônico de enxergar
situações refletidas, em distorção ao real. Aristóteles, em suas proposições acerca
do universo inteligível, aponta que o mundo físico não se engendra apenas em
caracterizações incorpóreas e inconstantes em um plano abstrato, mas em seres
concretos, sensíveis, designado de uma substância, o ser em forma base, ou um
acidente, ou seja, a peculiaridade do modo de ser (Soares, 2004). Conceição
Evaristo diz não se ver na palavra mundo, mas configura a escrevivência num
aspecto coletivo, de compartilhamento de experiências inserido na escrita e troca de
vivência no contato entre história e leitor.

Olhos d’água e Histórias de leves enganos e parecenças são integrados à seção de
contos, além das obras em prosa, Becos da memória, Canção para ninar menino
grande e Ponciá Vicêncio. Quanto ao sensibilismo poético em Poemas da
recordação. A forma como delineia elementos, tempo e personagens para traduzir
uma ótica visceral do comportamento humano, balanceado na perspectiva do
patriarcado branco e cegueira discriminatória, construindo narrativas eloquentes que
dão tom e ritmo às palavras; a artimanha artística valoriza gesticulação corporal, a
carga simbólica de um nome – como o das personagens Natalina e Ana Davenga –,
o experimento de viver outros impulsos, não depositários de insegurança e dores –
que se relaciona ao banzo. O banzo é abordado na literatura de Conceição para
evocar angústia histórica, remetida ao cânone da escravização na história do país.
E, apesar da realidade dura abordada nos contos – expõe amor, prazer, lágrima e
sangue –, flexiona certos textos em tom irônico sob maestria ao metaforizar
reflexões.

O tópico da maternidade sensibiliza meu ser. Procuro refúgio dentro de mim quando
me perco, o que implica quando se é mãe. Existe via de mão única; há uma
consciência de laço vital que une dois indivíduos por força não tátil. Única saída é
aguentar a sobrecarga e dar o outro fiapo ao neném. O bebê e a matriarca. O
sangue que nutre, assim como sustenta a sede pela justiça. A alegoria da Grande
mãe dedica a simbiose entre vida e terra à mulher, o modelo arquetípico da
cuidadora do mundo, além das criações biológicas, assim como pontua Cervantes,
Souza e Eyng (2023).

As nuances de Becos da memória mostram circularidade da narrativa, com a quebra
de expectativa, uma fuga da realidade para subsistir às mágoas da experiência e da
solidão. O jogo criado interrompe com o padrão literário e retira capítulos
delimitados, a fim de sugerir leitura reflexiva, que trabalhe com o inconsciente. O
título da obra transmite noção do vazio interior, a necessidade de inventar quando
falha a memória. Costura-se o valor da autoconsciência, da micro visão de
racialização (entender o recôndito eu, como mulher negra) na performance da
personagem Maria Nova. O espaço muda em vista da memória; elas acompanham
quando a ambiência física se ausenta. Aqui não há esperança de guardar algo
sequer, restando apenas lembranças, num ar solitário, que também se
complementa em Ponciá Vicêncio. Ponciá é mulher que desbrava da solitude, mas
apreensiva pelo banzo. Vive solitária com único preenchimento: hiperconsciência. A
lucidez de perceber a condição que vive pulsa resgate interno e da história, elucida
o movimento da Sankofa: simbologia africana que refere à ótica de retorno ao
passado para modificar o que foi esquecido.

História de leves enganos e parecenças pende suposições mágicas, sincretismo. A
inserção de entidades religiosas de matriz africana, como Oxum, se contrasta à
“santidade” de Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo, conforme a Bíblia. A orixá traz o
elemento água para aludir à limpeza temporal e início de ciclos, como a ansiedade
de Dóris a enxergar o próprio destino. A inferência da liberdade também é
estabelecida através de borboletas e pássaros em “A menina e a gravata”, à
libertação da subjetividade, diferentemente de Ponciá – apesar da reflexão interna,
há partes ocultas do fluxo de pensamento da personagem.

Canção para ninar menino grande tem sonância complexa. Creio ser o texto que
mais se assemelha à oralidade, sobretudo, pela ligação entre objetos ficcionais e
pessoas. Ambos se contrapõem para gerar tensão do que de fato aconteceu e o
que está implícito. Fio Jasmim, figura principal da história, ilustra condição de
masculinidade e patriarcado, entretanto, supondo a vulnerabilidade do homem nos
processos sociais, contribuintes para a perpetuação do machismo.

Agora é momento de respiro. Depois de alguns meses analisando peculiaridades
das obras de Conceição Evaristo, ainda me rendo ao prazer do desconhecido, como
no primeiro dia de aula. Quanto mais observo a obra, ainda enxergo o turvo da
neblina de minhas experiências. À escrevivência, pairei com certo desvio aos
resíduos que me acometem no cotidiano. Elucido, mas reajo a ele de forma
inocente, quase inconsequente, por não me esfoliar a pele com toda sua
complexidade. Poemas da recordação e outros movimentos, tornou-me consciente.
(Re)nasci no feminino, no ser mulher, no sangrar que me apanha, por hora.
Hans Ulrich Gumbrecht discorre acerca do Stimmung enquanto sentido ontológico
da literatura, em que ficção e realidade se unem a um terceiro, uma condição
exterior à ambiência criada naquele contexto. Stimmung é essa atmosfera que
efetua “presença” numa história.

Com isso, a poesia de Conceição emerge esse terceiro espaço num aspecto
sinestésico, orgânico, quase tangível. Traz exploração do corpo, das secreções, do
estado de metamorfose feminina, de autodescobrir-se no toque, no prazer carnal, no
trabalho artesão ao retalhar desejos que habitam em cada mulher, em seu
amadurecimento. A prosa sintetiza o material, torna-se linguagem automática,
operacionalizada. O poema abre para subjetividade e ambiguidade. O humano
adere às significações ímpares das pessoas que a interpretam e se desvela ao
polimorfismo envolto das narrativas.

O compósito da obra de Conceição Evaristo é uma partilha de imaginários e
esperança. Adentra em uma semilinguagem, da oralidade e dádiva textual, que
desperta reflexões filosóficas além de discussões convencionadas pelo senso
comum. Junta antípodas para movimentar as palavras, eleva instância narratória do
enquadramento contextual entre leitor e narrador. Em singelos versos, transfere
responsabilidade para quem lê a fim de projetar a Sankofa, ato de remodelagem do
presente a partir da literatura, do sair-se de si ao encontro de outrem. Há histórias
contadas, ideias vibrantes e insubmissas, mas ao final percebe-se que existe única
estória medular que integra o todo.

Lorena Rosa é estudante de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda na Universidade de Brasília (UnB) e se vê em busca de experienciar o mundo da literatura, interligando-o às práticas comunicacionais e de educação. Sou redatora no blog do Projeto de Extensão SOS Imprensa – UnB, focado no combate à desinformação e observatório midiático jornalístico, e estou integrada (e extremamente seduzida) a atividades extensionistas.

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