Para acabar com a má delicadeza
Má delicadeza: diz-se daquilo que obriga aqueles que se encontram na necessidade de corrigir os outros a escolher desvios e temperamentos para evitar de chocá-los.
Contra os asseclas do erro, nenhum desvio justificável.
Que a gente se amacie aos Pensamentos de um ou aos “Conselhos” do outro, pouca curva. O pedantismo do soberbo, qualquer que seja seu tempo, impõe a dureza da crítica. Cortesia, civilidade, polidez: erros grosseiros – ignorância massiva, operação mimética.
Projeto de conforto e ninharia ultramoderna: falar para nada dizer.
Questões aritméticas: diferença entre o nada e o zero.
Operação arriscada: em não falando senão somente uma língua, A não diz nada; B fala duas línguas, e tampouco diz algo.
Poliglotas, abuso de linguagem. Qual número de línguas faladas deve pedir um outro verbo que falar? É possível falar doze línguas e nada dizer?
Agenciamento temporal, contabilidade; os momentos de passagem de uma língua a outra se acumulam forçosamente. Doze vezes zero igual a zero; pode-se multiplicar o nada?
Falar quer dizer. Mas o quê?
Quantificação e qualificação em concorrência: mesquinharia de contador, avareza de engenheiro.
Aprender uma língua significa estar ocupado por ela. Resta ainda saber o que isso vale.
Probabilidade: a dúzia indica aqui o desejo de performance. Articulações labiais confundidas com as do entendimento.
Ninguém fala de nós em nossa presença como em nossa ausência. A união que há entre os homens não é fundada senão sobre esse mútuo embuste; e poucas amizades subsistiriam se cada um soubesse o que seu amigo diz a seu respeito em sua ausência, embora ele fale, então, sinceramente e sem paixão.
Falar fisiológico; falar línguas; falar de alguém. E quando falar quer dizer dizer: incômodo do falante, e arranjo – embora constrangedor – do ouvinte.
Proveitos. Nossas supostas escolhas sempre foram feitas em razão de comércio. Venda da aparência, hipnose, tocadores de tuba.
Amor de si, mola de violonistas e poliglotas. Vontade de parecer sob um certo feixe em vez de em função de certa autoridade. Lembrete: a caixa de ressonância craniana não é de pau!
Quanto mais se procura a performance, mais se a alcança; quer dizer, mais se ataca a razão.
Porta-estandarte da lógica do rendimento: sistema esportivo. Campeões: Titãs da imbecilidade alinhada. Milagre da era da escravidão remunerada: esporte como objeto de desejo. Tradução: querer destruir em si mesmo as faculdades de julgar e entender. Ser membro de um clube, torcer por um time, praticar um esporte habitualmente: aniquilação voluntária e ingênua do homem por ele mesmo. Corredores e saltadores, coelhos e bodes: incapacidade de receber delicadamente. A verdade deve ser-lhes gritada de frente. Movimento necessário, mas não suficiente: a permanência do esporte conduz o homem a uma estupidez irreversível – crânio de pau embrulhado em capacete de aço. Correr por correr; escalar para chegar ao topo do nada; escorregar para cair sempre no mesmo lugar: num árido e brumoso Tártaro, reino de torpor e inépcia. Burla da aparência: o campeão diz sou forte quando a locução justa é, exatamente, sou fraco. Crânio de pau: estética em músculo. Melhor: substituição laica da ética pela estética. Segunda burla: diz-se o corpo do campeão é belo ali onde a equação julgamento-entendimento-sentimento indica que ele é feio.
Artilharia pesada. Ficção. Truque fílmico. Setenta mil pessoas estão encarceradas na arena para torcer por um time. Zoom; travelling; câmera-lenta: os gestos filmados são os mesmos de uma semana atrás, quando se filmava setenta mil pessoas livres, ordinárias. Incontestável atualidade: união dos cidadãos na leseira pelo esporte. Asseguro um trabalho conveniente aos olhos da maior parte dos homens a fim de poder continuar a correr, saltar e escorregar, quer dizer, a agir como criancinha, animal, ou doente mental. Nisto a sociedade me encoraja. Amor pelo esporte, prova da mentira de uma promessa – ô Iluminismo.
Performers do Charivari; esportistas e torcedores do mundo inteiro, soldados de marcas e butiques : continuai, portanto, a atirar na razão, na inteligência, e no discernimento – o equilíbrio virá, talvez, por força de entropia!
De resto, um apelo aos dispersos: falai aos obtusos sem delicadeza e sem rodeio, a justiça se encanta.
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Diogo Santiago (Recife, 1981) publicou em 2018, na França, seu primeiro livro de crônicas intitulado Asinus Asinum Fricat; em 2022, seu primeiro romance (O Polvo) pela Editora Rua do Sabão (SP); e, um ano mais tarde, a sua primeira coletânea de poemas (Figuranistas), assinada com o pseudônimo Jurema Espinosa, pela editora TAUP (PR). Depois de ter vivido mais de uma década na metrópole lionesa, ele mora atualmente na Provença francesa, no coração da região vitícola dos Côtes-du-Rhône. Além de se dedicar ao exercício de uma escrita marcada pelo tanino da emancipação, ele trabalha como revisor e tradutor.