Isabela Sancho (@isabela.sancho) é escritora, ilustradora e psicanalista. Autora das plaquetes Quem fala em seu nome, Encavalave e Urna de pólen (com co-autoria de Flora Nakazone), do livro infantil A invenção das Isabélulas, dos livros de poemas As flores se recusam, A depressão tem sete andares e um elevador, dentre outros.
…
Leite de pedra
“Mamãe monocórdia marmórea —
me deixas
estar em teus braços
rolar para o chão —
leite de pedra, amor mamada impossível —
madre atrasada, podendo
amai-me.”
O poema duvidava inconcluso no bolso de Antônia, e ela não pôde ajudar a irmã mais nova com as palavras que essa demandava. Sem tempo para divagações, a caçula acabou optando, sozinha e enérgica, por um dos dizeres de saudade que iriam na faixa da coroa de lírios e crisântemos, além de escolher uma opção pronta de epitáfio para gravar na placa dourada que seria fixada sobre a lápide.
A primogênita não podia evitar o pensamento de que as únicas verdades a serem registradas por escrito na ocasião seriam tão somente as datas junto à estrela e à cruz. Também não conseguiu se fazer muito útil durante os preparativos do corpo, sem saber que destino dar aos lencinhos umedecidos e ao pó compacto. O par de sapatos que se viu segurando, demorou até entender onde encaixar.
Ao ver, enfim, sua mãe deitada de terço enrolado nas mãos e algodões no nariz, Antônia se deu conta de que seu aspecto não diferia tanto do que apresentava quando era viva, exceto, talvez, pela pele um pouco mais opaca e acinzentada do que de costume. No mais, as extremidades das sobrancelhas, a ponta do nariz e os cantos da boca continuavam envergados. Os olhos sempre estiveram como que afundados, parecendo fechados para o mundo mesmo quando abertos. Assim, não era como se as pálpebras, agora cerradas em definitivo, trancassem consigo algum tipo de brilho.
A mãe não aparentava estar especialmente triste por ter ido embora. Ao contrário, se pudesse falar, provavelmente diria estar exausta por ainda ter de ficar horas entre os que sobraram.
Talvez esse fosse um dos motivos para que a filha não sentisse aprofundar em si alguma fresta para o choro — quando percebeu que algo se aproximava e avolumava por dentro de seu rosto, espirrou. Havia muitas flores na antessala, inclusive o buquê que a irmã lhe metera nas mãos para mais tarde, e Antônia precisou respirar lá fora, longe do pólen e das condolências, enquanto esfregava o nariz com um lenço de papel, já amarrotado pelas chaves no bolso.
Não havia uma única nuvem no céu daquela tarde rosada. Os passarinhos faziam sua pequena algazarra de pios, com uma alegria pouco comedida. Dentro em pouco, o caixão seria fechado, e o cortejo seguiria pela viela de paralelepípedos à esquerda, em direção ao setor mais modesto do cemitério.
Antônia tomou a direita, por onde se chegava às árvores altas e aos túmulos com capelinhas e estátuas.
Gostava daquelas mulheres de pedra desde pequena. No enterro da mãe da sua mãe, enquanto esta se rebocava atrás do carro fúnebre, fez seus dedos curtinhos escaparem da mão adulta e, desviando das pernas dos ainda mais velhos, correu, correu para as alamedas.
Então brecou, repentinamente, ao ver pela primeira vez uma mulher como aquela: não é que fosse pálida — é que ela era mesmo inteira branca, branca… branquississíssima! Não só na pele, mas nos cabelos, na boca, nas roupas e no que deveria ser o colorido dos olhos. E era tão silenciosa: de manto na cabeça, ajoelhada com as mãos repousando juntas, de olhos baixos, sem falar, nem se mover.
Toninha também tentou ficar o mais quieta que pôde. Não queria sobressaltá-la ao se aproximar. Um pé, depois o outro, até ficar lado a lado com ela e, enfim, se sentar junto sobre a lápide. Era alta, muito tranquila e sozinha e bem linda. A menina fez um carinho no seu braço, depois em uma das suas mãos e, esperando para ver se a figura não ficaria brava por ser perturbada, achegou-se mais. Certificando-se, então, de que não se afastaria, deitou a cabeça em seu colo.
Tinha uns peitos tão redondos — a criança colocou a mão em cima de um deles e deixou os dedos bem abertos, mas o seio, ainda sim, conseguia ser maior. Era brilhante e liso, e só um pouco frio. Observando assim, de baixo, viu que a mulher também a olhava de volta. E sorria, um sorriso de leve. Um sorriso inteiro para Toninha. Parecia até que conseguia achá-la bonitinha. Quem sabe, se tivesse meios de se mexer, descolaria as mãos brancas das coxas e passaria os dedos entre alguns de seus cachos, sem se preocupar com o tempo.
Podia sentir que aquela adulta gostaria muito de niná-la, mas não tinha como, por causa da boca fechada. Então Toninha segredou, ela mesma, uma melodia sem palavras. E, mesmo de céu ainda claro, foi se fazendo uma noite alaranjada, a musiquinha ficando mais baixa e mais lenta dentro do peito, até sumir entre os bem-te-vis.
Foi um susto quando quase caiu no chão, tropicando nas pedras, puxada do sonho pelo antebraço. Reconhecendo a voz de sua mãe, percebeu-a zangada antes mesmo de juntar o sentido das palavras me matar do coração.
Tomada pelo pulso, dava três passos rápidos para acompanhar cada pisada da mulher consternada, olhando para cima, tentando adivinhar se a mãe ficaria sem lhe dirigir palavra pelos próximos dias — os castigos não declarados foram sempre mais doloridos que os safanões; também os únicos que encontraram modo de perdurar para além da infância.
Agora, diante de Antônia, a escultura estava esverdeada de musgo, limo, trepadeiras. Os caules lhe chegavam pelos joelhos, e logo os brotos de folha começariam a atar suas mãos. Antecipando os anos que estavam por vir, temeu que crescessem e um dia entrassem pelas narinas esculpidas.
Então, notou que não havia nariz para isso: a ponta estava quebrada, provavelmente há muito perdida no chão, rolada abaixo pelos paralelepípedos, uma pedrinha como qualquer outra. Restava a fratura irregular e áspera no centro do rosto, por onde aquela lepra pétrea se esfarelava mais e mais.
O busto também estava mudado, mas de outra maneira. Gastos, os seios deviam ter sido abaulados por meninos — aqueles que vinham de noite para fumar e beber no cemitério. Talvez tivessem criado uma superstição, uma sorte para si: apalpá-la, e assim poder sempre voltar.
As clavículas, olheiras, dobras do manto e divisões do cabelo estavam cobertas por excrementos já endurecidos. Imaginando as pombas na cabeça, nos ombros, batendo com a cauda e as asas no rosto da estátua, Antônia pegou seu lenço e começou a limpá-la nas têmporas e nos cantos dos olhos, com cuidado para não tocar os globos, enquanto algo ardia e se remexia por dentro dos seus.
Com a respiração e os braços suspendidos, sentiu uma repuxada no cotovelo: nem mesmo comigo enfartada — ela ainda tinha uma das pontas do papel limpa para aplicar nas pálpebras da estátua, quando se lembrou de que, a essa hora, o enterro da sua mãe já deveria estar em muito avançado. Se é que já não tinha acabado de vez.
Fungou e se apressou, atrapalhando-se em uma espécie de corrida que não a fazia avançar muito mais do que se apenas caminhasse. Quando chegou ao novo endereço familiar, os arredores já estavam esvaziados de gente, o tapete de grama úmida misturado a torrões de terra. Demoraria um bom tempo até ficar verde por inteiro, sumindo com os vestígios da cova recém-aberta, recém-fechada.Sentando-se junto à lápide, Antônia não sabia onde tinha deixado as flores da irmã, que devia ter passado toda a cerimônia olhando irrequieta para os lados. Mas ao ler a placa, percebeu, por fim, ter trazido algo de seu para deixar ali e, tirando do bolso o molho de chaves, ofereceu: Amada mãe.