Diário de viagem – Dia 1
A noite de ontem marcou meu décimo primeiro aniversário na ilha. Há onze anos, o mar salgava os meus pés e o sol fritava a minha pele.
Era sempre quente demais para vagar pela praia e, quando começava a escurecer, voltava para a única caverna da ilha e dormia. É verdade que chovia de vez em quando, mas isso nunca foi consolo nenhum. Serviu pra me mostrar que mesmo estando fora do mar, seguro na ilha, ainda podiam me molhar se quisessem. Quando chovia, mesmo que um pouquinho, o ar ficava frio, o que era algo tão raro que me assustava, por isso, logo aprendi a voltar pra caverna quando as nuvens escureciam. Era o único lugar seco nessas horas e me protegia dos ventos terríveis que ameaçavam levar meus cabelos.
Havia um córrego que nascia no coração da ilha, rodeava a caverna silenciosamente e caia no mar. E tudo indicava que também eu nasceria e morreria intocado naquela ilha. Porém, os anos se somam mesmo que ninguém os conte, e, ontem, finalmente, eu completei onze.
Naquela noite, choveu mais forte do que em qualquer outro dia. Trovões rugiam tão alto nos céus que pareciam estar lutando para abafar qualquer outro som do mundo, as ondas na praia sacudiam o mundo e os raios caiam como lanças. Tamanha batalha lá fora, não me surpreende eu ter sido acertado.
O raio acertou a caverna em que eu me abrigava como se ele tivesse tentado fincar-se no chão após a queda. No momento de pânico, me ouvi gritar pela primeira vez e aterrorizado com tantos barulhos violentos, e me colei numa das paredes ainda arfando.
Tentei me acalmar – jamais sentira tantas coisas pulsando dentro de mim. Mas um outro som alcançou meus ouvidos, muito mais estranho do que os estrondos anteriores e terrivelmente mais sedutor. Era água, sem dúvida, mas não me empurrava para longe como o mar. Chamava-me para perto, para descobri-la, para colocá-la bem pertinho de alguma coisa que vibrava dentro de mim. Não era como a chuva, que batia na terra com tanta força que entrava no chão; não era como o mar, que golpeava o litoral tão incansavelmente que eu, sozinho e calado, jamais soube o que é o silêncio. Não. Aquele som era delicado, pequeno, mas impaciente. Meus olhos, que estavam fechados do medo inicial e do esforço dos meus ouvidos, se abriram.
Bem no meio da caverna desenhou-se uma rachadura e dela, a água doce da chuva pingava vagarosamente, uma gota de cada vez. Não conseguia parar de observar aquela estranha magia que desacelerara a chuva e a trouxera para dentro. Ousei me aproximar e colocar na mão uma gota que certamente viajara mais do que eu jamais seria capaz nessa ilha. Ao olhar para a palma da minha própria mão, outra coisa me chamou a atenção. Embaixo dela, lá no chão, próximo aos meus pés, um rosto me observava: dois olhos acostumados ao escuro, brevemente iluminados pelos raios que continuavam a açoitar a noite. Olhos que viam o que eu via e um rosto que sentia o mesmo que eu. Foi tudo que vi.
Dessa vez não soltei um grito de horror, pois não entendi quão perigosa era a criatura. Simplesmente me encolhi num canto sussurrando na língua de uma primeira reflexão. Nem isso durou muito tempo porque a tempestade se enfurecia lá fora e a cicatriz no teto da caverna cedeu, expondo a escuridão do céu noturno. Ainda que boa parte da caverna estivesse inteira, eu já não poderia ignorar o vento e o frio. Já não poderia mais acreditar que a noite era tão escura quanto a caverna, pois vi os clarões, os raios e as estrelas pelo buraco no teto. Saí da caverna cambaleando, enrolado em mim mesmo, e ao sair na noite, como que tomado pela mais estranha das mágicas, corri em direção ao mar revolto e me atirei na água. As ondas tentaram me devolver à ilha, mas agora nada parecia mais impossível do que não morrer tentando sair dali, como o córrego fazia todos os dias.
Aprendi a nadar como aprendi a respirar: por necessidade, ao ser jogado no desconhecido. Eventualmente, a tempestade se tornou um leve chuvisco e nadei até que meus ombros estivessem dormentes. Exausto e feliz, me virei para cima para tentar descansar, desejei que fosse possível dormir na água sem se afogar.
Estava prestes a cair no sono e deixar o peso daquela noite me puxar para baixo, quando duas mãos calejadas me puxaram para o seco. Escutei barulhos que entendi serem perguntas e, ao responder, descobri quem eu era. Descobri minha história em voz alta e também a do homem que me resgatara. Éramos similares, outro homem, outra ilha. Os raios foram diferentes, mas no fim, lá estávamos os dois em alto mar, sem saber para onde iríamos, mas seguindo em frente.
Desconfiei que aquele homem não gritou pela primeira vez na noite anterior. Não foi lançado ao mundo tão despreparado e iludido como eu. Afinal, ele juntou pedaços de madeira, viu-os flutuar e entrou no mar sem se molhar.
Minhas suspeitas se confirmaram enquanto o ouvi falar. Tinha passado mais noites no barco do que na ilha e conhecia mais praias do que eu imaginava existir. De repente haviam milhares de praias na minha cabeça e eu me senti enorme. Ontem mesmo é que eu havia percebido, na goteira da caverna, que alguém morava em mim. E agora havia também outras ilhas… Até o mar pareceu crescer; era um infinito tão pequeno lá praia – só até onde meus olhos iam. Mas agora, sentia como se pudesse nadar para sempre e ele não acabaria.
E assim fomos até encontrar um barco que mais parecia uma ilha flutuante. E, extraordinariamente, eram as pessoas que pareciam controlá-lo. Lá dentro, dezenas de pessoas andavam atarefadas e adicionei suas ilhas ao meu mar. Nos colocaram a bordo e nos deram comida. À mesa, contavam histórias cheias de coisas que eu não sabia como imaginar mas me asseguraram que as entenderia um dia, mesmo sem vê-las. Milhares de coisas passaram a existir na minha cabeça da noite pro dia. Pessoas passaram a habitar meus pensamentos e tanta coisa já não cabia só no mundo e na cabeça. Foi aí que um dos tripulantes me passou lápis e papel e disse que, neles, cabe o que quer que quiséssemos colocar dentro. Poderia caber mais do que o mar inteiro.
No meu décimo primeiro ano de ilhado e no primeiro dia como viajante, inicio esse diário com o intuito de descobrir os mares e explorar as pessoas. Comecei com minha própria história que é selvagem, pequena e modesta, mas espero encontrar no trajeto um pouco dessa magia que me tirou do escuro.
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J. C. Cadar nasceu em 1998 na cidade de Belo Horizonte. Desde pequena sua paixão esteve nas palavras e então, naturalmente, todas as suas ocupações envolvem Letras. Formada em Edição, é mestranda em Estudos Literários pela UFMG e faz Pós-Graduação em Escrita Criativa. Enxerga o mundo em forma de história.