Às Favas
Debaixo da marquise encardida de lodo, de costas para o vidro que a separava do interior do prédio, Patrícia demorava sentada, com os joelhos unidos, as mãos sobre o colo, espremendo-se como quem quer se opor ao Big Bang. A cabeça inclinada para frente e os ombros protraídos formavam em torno dos seios uma concavidade defensiva. Não fazia calor nem frio, e ela estava vestida de sábado: short curto, blusa de malha sem mangas e sandálias de dedo gastas. Os cabelos, presos atrás, mas desgrenhados sem simetria. Fitando o chão com olhos avermelhados, o rosto empapado de lágrimas, Patrícia, a grandes intervalos de silêncio, soluçava, quando os músculos do tórax cediam ao cansado, após tanta tensão de controle.
A uns metros de Patrícia, na soleira da porta de vidro que separava a área externa da sala de atendimento, três homens fardados conversavam amenidades, trocavam camaradagens, riam incontidos. Não dava para Patrícia distinguir tudo o que diziam, porque seu juízo galopava para longe dali, até cair de novo na real. Flamengo… um salário de merda… vagabundo safado… Os três homens, a esta altura, já tinham esquecido o desconforto de quando chegaram com Patrícia, e ela ficou chorando a poucos passos deles.
Tanto eles quanto ela esperavam.
Era uma pena, para Patrícia, estar ali numa noite de sábado. Tinha temperado coração de galinha, asinha de frango e uns cortes especiais de carne. A churrasqueira estava forrada de carvão no quintal de casa. A vinagrete e a farofa, prontas na geladeira, em vasilhames cobertos com uma membrana esticada de insulfilm. As garrafas de cerveja já deviam estar na temperatura ideal àquela hora. Tinha até comprado fava na feira do dia, da melhor qualidade. Fazia tempo que queria comer fava, com saudades da receita de sua mãe. Uma semana de trabalho à espera do coração de galinha rolando na farofa, do gole de cerveja fresca na garganta, do samba na caixa de som, e Patrícia ali, encolhida, exilada do seu momento de sonho. Da cena roteirizada com antecipado prazer, tudo estava pronto, só Patrícia estava fora do lugar.
— Eu mandei olhar pra parede!
Um dos fardados da porta avançou num rompante para o interior da sala de atendimento, depois de subir a voz e abafar os sons do ambiente. Os outros dois acompanharam solidários com os olhos, a conversa amena interrompida pela irrupção do colega. Uma ou outra cabeça virou em reflexo, para, logo depois, retornar à posição inicial. Intervenção lograda, cada um reassumiu seu papel na cena anterior: risinhos, futebol, mulher gostosa, aqueles comunistas de merda, bando de viados.
Na pressa em que saiu de casa, Patrícia tinha esquecido o celular no balcão da cozinha, onde ele estava acumulando chamadas não atendidas e notificações de mensagens, com dezessete por cento de bateria. Patrícia queria ligar para o irmão, receber alguma orientação. Procurou a quem pedir um telefone emprestado. Pensou na costelinha assada na brasa, no encontro marcado com Leci Brandão, Alcione e Beth Carvalho programado para a noite mais sagrada da semana. Sua brincadeira arruinada. Soluçou, segurou a respiração e arranjou mentalmente as palavras que dirigiria aos desconhecidos, para pedir a esmola de uma ligação.
— Você não tá entendendo ou tá se fazendo de doido? Por que tá olhando de lado, se eu mandei olhar pra parede? Bote as mãos pra trás, senão vai ter encrenca!
A tensão aumentou. Brasilino, homem de baixa estatura e pele morena, pisava o porcelanato branco com os pés encardidos. Vestia uma bermuda de tecido sintético na altura do joelho e uma camiseta estampando o nome e o número de um candidato a vereador. Depois da ordem repetida, esperou alguns segundos antes de girar o nariz de volta para a parede, num movimento desafiadoramente lento e paciente. Os olhos dele piscavam pouco, após períodos de obstinada contemplação da parede, folha em branco à sua frente. Brasilino dava a impressão de que poderia morrer sem remorso nem pena da vida, muito menos de Patrícia.
Uma senhora de meia idade levantou da cadeira defronte a um dos guichês de atendimento, dobrou o papel que lhe fora entregue pela pessoa do outro lado do balcão, pendurou a bolsa no ombro e olhou para a saída. Circunspecta, se preparou para atravessar a sala de atendimento, fez um esforço para disfarçar sentimentos, cada passo rumo à saída um alívio. Pediu licença aos três homens da soleira de entrada, quase ao mesmo tempo que eles, antecipando sua passagem, abriram alas.
Patrícia continuava imóvel, as mãos se estrangulando mutuamente, e o efeito desse embate silencioso parecia se sentir no nó da garganta. A senhora de meia idade sentou a seu lado, acondicionou o boletim de ocorrência na bolsa apoiada no colo e puxou daí o celular. Patrícia não deixou de fixar com a vista o mesmo pedaço de chão onde estava bolando seu olhar desde que sentara, mas notou a luminosidade emanando do objeto que nova vizinha manipulava. Respirou mais longamente e afrouxou o garrote das mãos, o que lhe bastou para perder o controle do diafragma e soltar um soluço de choro.
— Minha filha, tenha coragem! Seja o que for, vai passar.
A ternura inesperada da desconhecida fez soçobrarem os diques que Patrícia, por pudor e medo, tinha sustentado até ali. Chorou cobrindo os olhos, para logo ser amparada pelos braços da mulher de meia idade que acabara de ser atendida na delegacia.
— Vou botar teu parafuso no lugar, vagabundo!
A mão fechada do policial golpeou o ouvido esquerdo de Brasilino, que tinha virado o rosto para os balcões de atendimento da delegacia. Perdeu o equilíbrio, mas logo levantou do chão e correu para a saída. Os dois outros policiais o detiveram, mas Brasilino se debatia como um endemoninhado, rolava, dava dois passos, caía, e engajou os três policiais no esforço de dominá-lo.
Desta vez, Patrícia olhou o embate, mas Brasilino, seu marido, saiu de seu campo de visão na correria, quando a porta da delegacia foi fechada por precaução.
— Esse rapaz, o que é seu, minha filha?
— É meu marido, dona.
— Meu nome é Fábia.
— Dona Fábia, quando eu vim pra cá na viatura, esqueci meu celular no balcão da cozinha.
— Tome, pode usar o meu…
— Patrícia.
— Ligue, Patrícia. Eu só não posso esperar muito, me desculpe, porque meu Uber está a caminho.
Patrícia discou para o irmão, sem sucesso. Uma, duas, três, cinco vezes. A cunhada tampouco atendeu. De qualquer forma, moravam do outro lado da cidade e não tinham carro, qualquer ajuda ou conforto demoraria horas. A mulher olhou o teclado na tela do celular. Não tinha a quem recorrer, e a verdade é que, se tivesse de verdade, já não viveria com Brasilino.
— Muito obrigada, dona Fábia.
— Não deu certo?
Patrícia fez que não com a cabeça.
— Sinto muito. Pode me chamar só de Fábia.
— Tá certo. O que a senhora está fazendo aqui sozinha?
Fábia se calou por alguns segundos, viu, diante de si, a figura desgrenhada e chorosa de Patrícia e ponderou a resposta possível.
— Problema com marido também, minha filha. Ou ex-marido, não sei mais…
— Ele bateu na senhora?
Fábia alisou a blusa branca de algodão de cada lado do corpo, acomodou uma mecha de cabelo atrás da orelha, não se apressou em responder. Notou, na nova conhecida, os cabelos desgrenhados e um hematoma perto da boca.
— Esse rapaz agrediu você?
— É, mas não foi nada de mais. Eu também não sou flor que se cheire. Joguei um copo nele outro dia, mas não pegou. Podia ter pegado, né?
— Meu marido aproveitou uma viagem que eu fiz para visitar minha mãe e instalou uma nova fechadura eletrônica. Não posso mais entrar em casa. Agora está com uma mulher mais nova.
De dentro da delegacia se ouviam vozes exaltadas e algazarra, mas não se via mais ninguém na sala de espera. O celular de Fábia vibrou.
— O Uber.
— A senhora gosta de fava?
— Era a comida preferida da minha mãe. Por quê?
Quando o carro chegou, Patrícia e Fábia entraram juntas no banco de trás. Terminaram o sábado comendo fava e tomando cerveja ao som de um samba.
…
Ramon Limeira é paraibano, bacharel em Filosofia (UFPB) e Mestre em Literatura (UnB). Diplomata de carreira desde 2011, tendo morado em Genebra e em Montreal. Atualmente, vive em Brasília com Victor, seu marido, e os felinos Homero e Penélope.