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DO CEFALÓPODE ILUSIONISTA

Esta estranha e complexa criatura – cujos pés, seus oito sinuosos tentáculos, encontram-se diretamente ligados à sua cabeça, dotada de nove cérebros, três corações e sangue azul, flexível, espreme-se em qualquer canto, esgueira-se ligeiro entre potenciais adversários, esconde-se entre rochedos, artista do disfarce, ilusionista das águas abissais, mas transitando entre a água e a terra, provido da capacidade de mudar de cor num piscar de olhos, ele pinta sua fuga numa borrifada preta, atarantando seu predador para, em seguida, transformar-se em alga, peixe-espada, água-viva, aranha-do-mar –, tal é o cefalópode octópode cromatóforo. O polvo, criatura tão esquisita, embora pareça ter saído de um pesadelo, é tão capaz de sonhar quanto o homem; embora pareça ter saído dos livros de terror ou ficção científica, de uma realidade outra, vive no mesmo mundo que nós. Ele permanece, há tempos, assombrando a imaginação humana. As representações de polvos encontram expressão desde os vasos na cultura grega antiga, nas pinturas aborígines, até a arte erótica, o cinema, a literatura, a pintura. 

O filósofo da ciência, Peter Godfrey-Smith, refere dois pesquisadores, Martin Moynihan e Arcadio Rodaniche, que afirmam – dada a sua inteligência planejadora que instaura um outro modelo de sistema cognitivo no reino animal, e suas capacidades camufladoras – ter o polvo “(…) uma linguagem visual, com uma gramática – com substantivos e adjetivos, e por aí em diante” (GODFREY-SMITH, 2016, p. 69). A própria existência em devir do polvo, que ora é isso e aquilo, está sempre cá e lá, titubeando seu ser em perpétua profusão cromática, força a linguagem científica a recorrer às artes e à literatura para tentar defini-lo. Neste ensaio, portanto, tencionamos investigar algumas expressões do polvo, tendo como foco as formas, contornos e sintaxes por ele delineadas em algumas obras da literatura francesa – em particular, algumas passagens de Victor Hugo, Guillaume Apollinaire e Louis-Ferdinand Céline. Se a existência do polvo abala as categorias da ciência natural – incapaz de compreendê-lo apenas como animal cefalópode invertebrado a ciência recorre às noções de “linguagem visual” e “gramática” –, sua presença na literatura também acarreta modificações estéticas e propicia uma reflexão sobre essa arte. Por que há séculos o polvo foi objeto de interesse de pintores e escritores? Parece-nos que menos que objetos, os polvos operam, efetivamente, como intercessores de um fazer pictural e literário que passa ora pelo fantástico, ora pela inumanidade, pelo grotesco. 

Victor Hugo esboça, no romance Os Trabalhadores do Mar (1866), um tremendo retrato do polvo contra quem o protagonista, o pescador Gilliat, eventualmente terá de lutar. Hugo procede à descrição do polvo no segundo capítulo da quarta parte. Intitulado “O monstro”, o capítulo apresenta a criatura inicialmente como inimaginável, como algo em que se poderia crer apenas tendo-o visto. O problema que o narrador se põe, portanto, fruto da súbita aparição do polvo que ele próprio alega ter visto, é o do princípio de realidade. Tal aparição, pela sua constituição diversa, borra os contornos do real, para assumir uma dimensão mítica e contornos fantásticos. O polvo transforma-se primeiro em tecido, guarda-chuva (cf., HUGO, 2018, p. 675), farrapo, roda (cf., ibid., p. 676), aracnídeo, camaleão (cf., idem), dragão (cf., ibid., p. 677), só uma pele (cf., ibid., p. 680), gelatina animada, Medusa servida por oito serpentes, do vazio contendo olhos (cf., ibid., p. 681), pavorosa sacola (cf., ibid., p. 682), para, enfim, ser definido como monstro (cf., idem). A qualificação se vale, tanto quanto, de ambiguidades, já que o narrador não nega à criatura suas graciosidades: “Ele [o polvo] fica bonito, se alumia, se ilumina” (ibid., p. 680). E, também, de contradições, já que somado a tudo isso, o polvo ainda é capaz tanto de nadar quanto de andar, de ser peixe e réptil. O polvo força, enfim, os limites da realidade tal como concebida pelo realismo ou pelo romantismo, já que sua irrupção parece ser uma prova inegável do fantástico: “Esses animais são fantasmas bem como monstros. (…) Eles tocam a fronteira humana e povoam o limite quimérico. Nega-se o vampiro, aparece o polvo” (ibid., p. 684). 

O polvo conduz, em segundo lugar, a uma meditação filosófica: “Onde a ciência os [esses estranhos animais] deixa, a filosofia os retoma. A filosofia estuda, por sua vez, esses seres” (ibid., p. 683). A meditação se desdobra no problema da relação entre criatura e criador. No começo do capítulo, o narrador refere o animal à visão do execrável em que Deus teria se superado, sua obra-prima do espanto (cf., ibid., p. 673). Em seguida, o narrador o refere ao Diabo: “(…) é certo que o polvo num extremo prova Satã num outro” (ibid., p. 685). Finalmente, sintetiza-se o criador na figura de um deus duplo, “(…) em direção ao temível bifronte dos maniqueístas” (ibid., p. 686). A filiação demoníaca se deve à encarnação do mal indicada pelo polvo: “Elas [essas criaturas] são as formas pretendidas do mal” (ibid., p. 683). Assim, o otimismo, que, para o narrador, “(…) é a verdade, no entanto, quase perde a compostura diante deles [esses animais]” (ibid., p. 684). Embora um monstro, ele permanece indefinível por apenas uma única categoria, só podendo ser compreendido em devir entre diversas formas – o tecido, o guarda-chuva… –, dentre as quais consta a forma humana. O polvo é também marcado, enfim, no romance de Hugo, por traços antropomórficos e por paixões humanas, como o mal, o ódio e a hipocrisia. 

O poema O Polvo (1911) de Guillaume Apollinaire, trabalha sobre as intersecções entre inumanidade e arte a partir de um retrato do polvo enquanto poeta, ou do poeta enquanto polvo: “Lançando sua tinta aos céus, / Sugando o sangue de quem ele ama / E achando-o delicioso, / Este monstro inumano, / sou eu mesmo” (APOLLINAIRE, 2022, p. 29). Na animalidade do polvo há algo do fazer literário – sua tinta (encre) –, como em sua forma de predação e apreciação do mundo – a sucção imposta pelas ventosas –, uma forma da relação amorosa. Encontra-se, nesse duplo retrato do poeta-polvo, a almejada “inumanidade” que, para Apollinaire, marca eminentemente a busca de todo artista: “Antes de tudo, os artistas são homens que querem se tornar inumanos. Eles procuram penosamente os traços de inumanidade (…)” (APOLLINAIRE, 1950, p. 11). Para Jacquot, essa inumanidade se relaciona à plasticidade da criação: “(…) o polvo-Apollinaire, criatura terrífica, vampiresca e proteiforme, reivindica, aqui, sua natureza propriamente inuma e, por conseguinte, criadora” (JACQUOT, 2012, p. 31).

Nos Caligramas – Poemas da paz e da guerra (1918) de Apollinaire, escritos entre 1913 e 1916, também encontra-se uma menção ao polvo no poema Oceano de terra, de 1915:

Construí uma casa no meio do Oceano 

Suas janelas são rios que escorrem dos meus olhos

Polvos se entrelaçam entre todas as suas muralhas 

Ouçam seu triplo coração que bate e seu bico soando nos vitrais (…) 

Atenção, vão começar a ancorar

Atenção que é colorar que vão (…) 

Os polvos terrestres palpitam 

E, então, tantos de nós nos tornamos nossos próprios coveiros

Pálidos polvos das ondas cretáceas, ó, polvos de bicos pálidos (…) (APOLLINAIRE, 1966, p. 79).

O polvo assume, aqui, contornos angustiantes. Para Jacquot, a antítese do título pode ser lida como uma representação da guerra de trincheiras (cf., JACQUOT, 2012, p. 30). Desse ponto de vista, Philippe Renaud interpreta os polvos, nesse poema, como as “vísceras infinitamente ramificadas” dos combatentes vindimados (RENAUD apud JACQUOT, 2012, p. 31). Já Peter Read os apreende como a própria metáfora dos soldados (cf., idem). Em todo caso, parece-nos ter sido Apollinaire o primeiro a metaforizar mortiferamente o polvo no contexto histórico da Primeira Guerra Mundial.

No manuscrito Guerra (1934), redescoberto em 2021, e publicado em 2022 pela Gallimard, Louis-Ferdinand Céline conta como se deu o ferimento de Ferdinand na Primeira Guerra, e sua posterior convalescença no hospital de campanha em Peurdu-sur-la-Lys. A publicação desse manuscrito permite uma compreensão mais ampla do desenvolvimento do estilo de Céline, e de seus aspectos estéticos. Aqui, por exemplo, encontram-se elementos de metaliteratura, diálogo com o leitor, função mnemônica, busca do delírio, a sátira social e o grotesco. 

Uma das passagens mais memoráveis do manuscrito, dividido em seis partes, diz respeito à irrupção do polvo, na quarta parte. Ele aparece no âmbito da sátira social levada a cabo tanto pela desqualificação das personagens em posição de autoridade, quanto pelos valores modernos que encarnam, crenças às quais piamente se fiam. Ferdinand critica o militarismo encantado de seus pais, que ainda pregavam uma intervenção suprema contra os alemães. O que o narrador denomina como uma negação da verdade do mundo é referida, em seguida, tanto como “(…) uma língua bizarra, pra falar a verdade, uma grande língua de babacas” (CÉLINE, 2022, p. 82), quanto a expressão de um ponto de vista arraigado na concepção da remediabilidade das coisas (cf., ibid., p. 83). O narrador amplifica os efeitos nauseabundos do comportamento resultante dessas ideias diretrizes ao converter, finalmente, o otimismo cego de seus pais num “(…) polvo bem pesado e colento como a merda (…)” (idem). O polvo do otimismo estende seus tentáculos sobre a verdade da degradação e do declínio. Dessa forma, a única forma de lucidez, a ruptura da asfixia imposta por suas ventosas sufocantes, é o desespero: “(…) desesperar um pouco do mundo e da vida” (idem). O polvo aparece, assim, como a expressão do grotesco que há no otimismo, como a explicitação do desespero.

Em suma, tentamos demonstrar ao longo desse ensaio, as múltiplas faces assumidas pelo polvo na literatura francesa. Para Hugo, embora apresente traços antropomórficos, a criatura assume uma dimensão mítica, e exprime as fronteiras indefiníveis entre realidade e fantástico. Para Apollinaire, o polvo é um duplo do poeta, ele contém tanto o elemento de inumanidade buscado pelo artista, quanto é metáfora privilegiada para expressar o horror da guerra. Finalmente, para Céline, o polvo é uma expressão grotesca do otimismo, que objetiva o desespero e o pessimismo como fundamento do real.

REFERÊNCIAS

APOLLINAIRE, Guillaume. Caligrammes. Paris: Gallimard, 1966.

___________________. Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée. Paris: Éditions Araraunas, 2022.

___________________. Les Peintres Cubistes – Méditations Esthétiques. Genève: Pierre Cailler, 1950.

CÉLINE, Louis-Ferdinand. Guerre. Paris: Gallimard, 2022.

GODFREY-SMITH, Peter. Other minds – the octopus, the sea, and the deep origins of consciousness. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2016.

HUGO, Victor. Les Travailleurs de la Mer. Québec: BeQ, 2018.

JACQUOT, Clémence. Le poulpe apollinarien, une figure tentaculaire de la “plasticité”. Apollinaire – Revue d’études apollinariennes, n°11, 2012, pp. 27-39.


Amanda Fievet Marques é Mestra e Doutora em Teoria História Literária pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária (IEL/Unicamp).

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