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Camila Balthazar é jornalista e escritora, sempre atrás de boas histórias. Em 2017, publicou seu primeiro livro, BIO 50 CEOs, escrito a partir de entrevistas com algumas das maiores lideranças do Brasil e do mundo. Foi editora de uma revista de bordo, escreveu dezenas de livros com histórias corporativas e familiares e tem uma empresa que reúne jornalistas especialistas em dar voz às ideias de líderes de grandes empresas. A partir da experiência que viveu entre 2020 e 2022, escreveu Sem tinta, primeiro livro que investiga parte da sua própria história.

A caça às bruxas e às mulheres de cabelo branco

Às vésperas do Halloween de 2021, terminei de ler o livro Bruxas – A força invencível das mulheres, escrito pela francesa Mona Chollet, e fiquei com alguns pensamentos considerados absurdos para os dias de hoje. 

O primeiro era que é uma sorte que sei boiar. Se eu vivesse nos séculos 16 e 17, me jogassem na água e eu afundasse, poderiam me considerar uma bruxa. O segundo era que se um barco enfrentasse uma dificuldade em alto-mar, a quilômetros de distância de mim, eu poderia ser culpada. E o terceiro era que se eu pedisse esmola e alguém negasse, mas depois essa pessoa adoecesse ou tivesse um problema, só poderia ser praga minha. 

Todos esses casos me levariam ao mesmo destino: ser condenada e executada, seja queimada na fogueira ou enforcada em praça pública. “Ai, credo!”, você até pode pensar, pois essa também foi a minha primeira impressão.

Logo entendi que muito do que vivemos hoje — das desigualdades de gênero ao preconceito contra as mulheres mais velhas — vem da época da caça às bruxas nos séculos 16 e 17. Segundo a autora, o número de mulheres mortas durante esse período continua sendo uma incógnita. Na década de 1970, a estimativa girava em torno de um milhão de vítimas. Hoje em dia, dizem que foram entre cinquenta e cem mil.

De acordo com o livro, esses números não incluem aquelas que foram linchadas, nem as que se mataram ou que morreram na prisão. “Outras, sem perder a vida, foram degradadas, ou viram suas reputações e as de suas famílias arruinadas”, conta Mona Chollet. “Mas todas as mulheres, mesmo aquelas que nunca foram acusadas, sofreram as consequências das caças às bruxas. A encenação pública dos suplícios, potente instrumento de terror e de disciplina coletiva, incentivava-as a se mostrarem discretas, dóceis, submissas e a não criar caso.” 

Falar alto, ser independente, ter uma sexualidade mais livre, encontrar muito as amigas ou viver sozinha era o suficiente para levantar suspeitas. Até mesmo faltar à missa muitas vezes, ou nunca faltar, era um comportamento estranho. O livro também traz casos de mulheres denunciadas por seus próprios maridos — se eles tivessem uma amante e não soubessem o que fazer com a esposa, acusá-la de bruxaria era uma ótima saída para tirá-la de cena.

Sinto vontade de contar tudo o que li sobre como a caça às bruxas — ou seria a caça às mulheres? — moldou a nossa sociedade hoje. Mas várias mulheres já fizeram esse trabalho. Além de Bruxas – A força invencível das mulheres, outros livros sobre o assunto que têm tradução para o português são Mulheres e caça às bruxas, da italiana Silvia Federici, e As bruxas: Intriga, traição e histeria em Salem, da estadunidense Stacy Schiff.

Por isso, me atenho à conexão com os cabelos brancos. A primeira linha do livro da Mona Chollet descreve a bruxa da Branca de Neve, clássico filme da Disney: “Os cabelos cinza desbotados sob o capuz preto, o nariz curvado com uma verruga de enfeite, o sorriso forçado e imbecil mostrando um único dente fincado na mandíbula inferior, as sobrancelhas sobre os olhos de louca que acentuavam ainda mais sua expressão maléfica”.

A madrasta da Cinderela, a Cruella dos 101 Dálmatas e até mesmo o papel de Meryl Streep em O Diabo veste Prada reforçam essa associação entre o mal e os cabelos brancos, como lembra a cientista política, Claire Robinson, em seu ensaio Grey is a feminist issue (em uma tradução livre, Cabelo grisalho é uma questão feminista). Acrescento mais uma grisalha à lista: Dona Clotilde, conhecida como a Bruxa do 71, do seriado Chaves.

Essas e outras personagens foram transformando a mulher de cabelo branco em uma figura ameaçadora; e a bruxa, em ficção. O tempo apagou a história real vivida poucos séculos atrás por várias mulheres, incluindo brasileiras. Uma delas, Maria da Conceição, se desentendeu com um padre por conta dos seus medicamentos à base de ervas medicinais para curar doentes. Morreu em uma fogueira em São Paulo, em 1798.

O livro da Mona Chollet me apresentou muitas histórias que eu desconhecia e desconstruiu a imagem que eu tinha das bruxas. Antes, essa palavra me levava às personagens caricatas de chapéu pontudo ao redor de um caldeirão, ou ao folclore de Franklin Cascaes em Florianópolis — por isso a cidade é conhecida como Ilha da Magia —, ou às três bruxas do filme Abracadabra, de 1993, que apareceram tantas vezes na Sessão da Tarde.

Eu tinha as melhores lembranças desse filme, até ler a crítica da jornalista Rose Dommu no portal Mic em 2016. Traduzido para o português, o título do artigo seria “Bruxas na tela: boas para a moda, ruins para o feminismo?”. A pergunta já tem spoiler, mas vale ler a sinopse escrita pela jornalista.

“O filme mostra três bruxas que aparentemente conseguiram seu poder por meio de um acordo com o diabo. As irmãs Sanderson são retratadas como megeras malignas obcecadas com os ideais de juventude e beleza e farão de tudo para possuí-los. Elas são convocadas por uma virgem e então frustradas por três crianças que servem como modelos de inocência.”

Por essas e outras invenções do cinema, a intelectual Silvia Federici reforça a importância de conhecermos nosso passado. “As pessoas acham que as bruxas são personagens imaginárias. Não são”, ela diz em um vídeo do canal da editora Boitempo no YouTube, gravado em 2020. “Por muito tempo, a história da caça às bruxas foi apagada e transformada em lenda. Esses tipos de iniciativas dos filmes de Hollywood não são inocentes e não podemos aceitá-los.”

Como também diz Mona Chollet, essas representações estão instaladas em nossa imaginação. Para isso, ela cita uma frase de Kristen J. Sollee, autora do livro Bruxas, vadias e feministas, que mostra como os filmes da Disney sempre nos apresentaram um conflito de gerações entre velhas bruxas e jovens beldades, fazendo com que a coragem de uma mulher repouse em sua fertilidade e juventude, nunca na sabedoria duramente conquistada.

Essa é uma das razões pelas quais, segundo Mona, os grisalhos são mais bem-vistos nos homens. “A experiência que o cabelo branco traz é considerada sedutora e reconfortante neles, e ameaçadora nelas.” Ela ainda vai além: “Por que tantas vezes os cabelos brancos de uma mulher levam à suposição de que ela se ‘descuidou’, senão porque evocam a imagem da bruxa vestida com trapos?”.

Vimos essas imagens desde a infância. Aprendemos a não gostar das bruxas más e a apreciar as princesas. Torcemos o nariz ao ver uma mulher de cabelo branco — apesar de magicamente acharmos charmoso nos homens. Apagamos essa história macabra de caça às bruxas com um feitiço, ignorando qualquer conexão com as nossas antepassadas.

Vasculhando a internet atrás de mais informações, encontrei o episódio de um podcast sobre bruxas e mulheres sábias. No final da conversa, uma das apresentadoras do programa chamado Serendipity fez a seguinte provocação: 

“As pessoas podem não usar mais a palavra bruxa como no passado, mas usam substitutas com a mesma conotação. A ideia da mensagem continua a mesma: não saia da linha, não seja rebelde, não conteste as estruturas patriarcais e religiosas. Ou você será queimada — talvez não fisicamente, mas metaforicamente”.

Peço desculpas caso essas ideias assustem. Depois de contar toda essa história, talvez eu devesse ter escrito um texto menos macabro, para ir contra o senso comum das bruxas más. Nesse caso, porém, nossa realidade é mesmo sombria.

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