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O carrilhão

Eu via como meu avô estava mudando,
passando de um estágio
a outro,
perdendo velhas habilidades
com seu par de olhos
amarelos
e a pele curtida
de sol, as mãos trêmulas
como a chama de uma vela
acariciada pelo vento.

Nas escleras, pequenos fios se ramificavam,
como os galhos de uma pequena arvore,
as ramagens de uma folha amarelada
como a pintura de velhas gravuras
nas paredes de um vaso.
Na parede da sala,
a habitação de velhos relógios
silenciosos, imóveis,
perdidos no grande suplicio
que era o tempo.

E me sentei tranquilamente, na sala de estar,
onde brinquei quando criança,
atônito ao ver que um cuco ainda saia de um chalé de montanhês
e em raras ocasiões
um pêndulo parecia buscar
a mesma hora aleatória,
no velho relógio Herweg.

Eu agora com vinte e cinco anos, pensando
se algum relógio badalasse
uma vez por ano,
talvez o envolvesse num abraço
por suas 82 badaladas
num deleite junto dele
na solidão robusta.

Desde quando saí de casa, numa ocasião,
e coloquei embaixo do braço
o velho relógio de pêndulo
como se carregasse
uma gaiola
dentro da qual habitava
um pássaro moribundo,
-aquela caixa de madeira
que parecia o caixão de uma criança pequena
dentro da qual havia um relógio de três furos

o buraco no meio, perto do número seis, alimentava o trem do tempo,
o buraco da direita que fazia a engrenagem tocar a cada quinze minutos,
e o buraco da esquerda a cada meia hora-
desde aquele tempo, portanto,
nunca houve um relógio
que meu avó não concertasse,
como uma criança aplicada
que trouxesse para casa
um dever,

e jamais haverá
na perfeição de um Biedermeier
mais vontade do que havia naquele dia
-ainda que toda uma geração lhe pesasse nas costas
e a saúde lhe esvaísse como um remoinho
do vento -,

nem mais paciência que eu tivesse ouvido falar
ou hombridade que conhecesse
maior que qualquer homem, tempo ou distância
nem delicadeza ou distinção
perto do que jamais havia experimentado por qualquer um,
homem ou mulher,
nem aceitação ou compreensão do que havia por vir,

e jamais, do mesmo modo, a mesma conversa
que tivesse início ou fim,
nem um dia que se passasse sem notícias dele,
nem prateleira com tantos livros que quisesse ter lido,
nem tampouco
música tão bonita tocando na vitrola Croisler
nem o muro de bougainvilles lá fora que tivesse visto em outro lugar
tão florido,

desde a chuva que escorria pela água furtada
aos pombos bicando na inclinação do telhado
ou coisa alguma de que me recorde agora que tivesse se repetido,
de uma ou de outra forma,
nem mesmo a ausência
do que não havia para ver
ou a presença de tanta coisa saturada,
desde a mesa trabalhada
até o último entalhe, ao lustre, a cristaleira e o bufê,
que não fossem vistos, tantas vezes quanto o que podiam meus olhos ver.

E não se encheu mais a casa
desde aquele dia,
com um único dia secretamente comprovado
que não fosse aquele.

Max Oliveira Raposo é médico e desde a infância teve um interesse natural pelas artes. Seu contato com os livros foi estimulado quando, aos 8 anos, ganhou um presente de seu pai- um livro de Júlio Verne (A volta ao mundo em 80 dias). Desde então, tornou-se um colecionador de livros e um bibliófilo. Atualmente tem muitos projetos em andamento, incluindo livros de poesias, contos e uma série de romances.

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