Resumo
O presente artigo parte do interesse em identificar e analisar os traços caracterizadores da produção literária brasileira na contemporaneidade, submetida aos meios eletrônicos. Para isso, estudaremos três poemas das escritoras Maria Ávila, Ryane Leão e Tatiana Nascimento, os quais circulam no mundo virtual. Analisaremos sua estrutura, os temas abordados, onde está sendo veiculada, quem é o sujeito-autor e como este se posiciona diante dessa era cheia de inovações, quais características em comum com gerações passadas (se houver) e sua ideologia. Além de compreender até que ponto essas mudanças podem trazer benefícios e ou malefícios para nossa literatura. De acordo com Fábio Lucas, “A linguagem poética é imprópria para os meios de comunicação”. Diante dessa afirmação, nos cabe questionar: até onde a revolução eletrônica afeta a literatura? Há espaço para a poesia nas mídias eletrônicas ou ela perde seu sentido? A produção literária brasileira atual cede ou resiste aos ditames da indústria cultural? Quais traços definem a produção literária da atualidade? Para alcançar o objetivo deste estudo, utilizarei a metodologia de pesquisa bibliográfica, consultando obras dos críticos literários: Fábio Lucas (2022), Karl Erik Schollhammer (2009), Wilberth Claython Ferreira Salgueiro (2018), que trazem uma reflexão sobre o contemporâneo e como a literatura está nele inserida, fazendo análises de alguns escritores, e para o estudo sobre a formação do enunciado das poesias, terei como base o conceito de Michel Foucault (2008, 7. ed).
Palavras-chave: Poesia Brasileira. Literatura. Contemporâneo. Escritores. Internet.
Abstract
This article is based on an interest in identifying and analyzing the characterizing features of contemporary Brazilian literary production, submitted to electronic media. To do this, we will study five poems by writers Maria Ávila, Ryane Leão and Tatiana Nascimento, which circulate in the virtual world. As well as its structure, what themes are covered, where it is being broadcast, who is the subject-author and how does he position himself in this era full of innovations, what characteristics are in common with past generations (if any) and their ideology. In addition to understanding the extent to which these changes can bring benefits and/or harm to our literature.
According to Fábio Lucas, “poetic language is inappropriate for the media”. Given this statement, we must ask: to what extent does the electronic revolution affect literature? Is there space for poetry in electronic media or does it lose its meaning? Does current Brazilian literary production yield or resist the dictates of the cultural industry? What traits define today’s literary production? To achieve the objective of this study, I will use the bibliographical research methodology, consulting works by literary critics: Fábio Lucas (2022), Karl Erik Schollhammer (2009), Wilberth Claython Ferreira Salgueiro (2018), who bring a reflection on the contemporary and how literature is included in it, analyzing some writers, and for the study of the formation of the utterance of poetry, I will be based on the concept of Michel Foucault (2008, 7. ed).
Keywords: Brazilian Poetry. Literature. Contemporary. Writers. Internet.
Introdução
A literatura brasileira contemporânea é atravessada por um contexto histórico conturbado, tanto no mundo como dentro do cenário brasileiro, com a política, ditadura e a necessidade de manifestações. Por isso, os autores contemporâneos fazem de suas artes uma mistura de diversos estilos e temas, da escrita social à escrita sentimental. E foi pensando nessa diversidade e velocidade de produção, como esses textos circulam com tanta rapidez na internet e chegam aos seus leitores, como tem crescido, também, o número de escritores no Brasil, que essa pesquisa foi pensada.
Neste trabalho irei discutir como se dá a produção de poesias brasileiras na contemporaneidade e como essas estão sendo submetidas aos meios eletrônicos. O objetivo dessa pesquisa é identificar e analisar os traços caracterizadores da produção literária nacional contemporânea. Para isso, estudaremos três poemas das escritoras Maria Ávila, Ryane Leão e Tatiana Nascimento, os quais circulam no mundo virtual. Analisaremos sua estrutura, quais os temas abordados, onde está sendo veiculada, quem é o sujeito-autor e como este se posiciona diante dessa era cheia de inovações, quais características em comum com gerações passadas (se houver) e sua ideologia.
De acordo com Fábio Lucas, “A linguagem poética é imprópria para os meios de comunicação”. Diante dessa afirmação, nos cabe questionar: até onde a revolução eletrônica afeta a literatura? Há espaço para a poesia nas mídias eletrônicas ou ela perde seu sentido? A produção literária brasileira atual cede ou resiste aos ditames da indústria cultural? Quais traços definem a produção literária da atualidade?
Tendo em vista os diversos questionamentos, com o objetivo de identificar e analisar as produções poéticas atuais, na crescente era da informação e do mundo virtual, pretende-se destacar não só os benefícios que as novas tecnologias ofereceram à produção, divulgação e circulação dos textos de escritores (e de quem deseja ser escritor), mas também seus malefícios.
Como referencial teórico-metodológico, utilizei conceitos de três críticos literários: Fábio Lucas (2022), Schollhammer (2009), e Salgueiro (2018) para discorrer sobre a literatura da era eletrônica, como ingressamos na era da velocidade e como as formas literárias, destacando a produção poética, se submeteram à dinâmica da veloz transformação. Além disso, busquei como base para análise dos enunciados, o discurso de Michel Foucault (2008, 7 ed.) sobre a prática discursiva.
O trabalho é dividido em seis partes, além da introdução: a primeira fala sobre o que é literatura contemporânea, a segunda nos fala sobre os traços caracterizadores da atual poesia brasileira contemporânea, no terceiro tópico discorremos sobre a literatura e as novas tecnologias, a quarta parte temos o que é a prática discursiva proposta por Foucault, a quinta é a descrição e análise do corpus selecionado, na sexta parte, discorremos sobre as posições dos sujeitos e em seguida finalizamos com as considerações finais.
O que é Literatura Contemporânea
O que é contemporâneo? Roland Barthes aproximou o “Considerações intempestivas”, de Nietzsche de “o contemporâneo ao intempestivo”, o que significa, segundo Schollhammer (2009), que o verdadeiro contemporâneo não é aquele que se identifica e sintoniza com o tempo que vive, mas é aquele que é capaz de cantar o seu tempo e enxergá-lo, ser diferente e enxergar as diferenças. E por não conseguir se conectar com o seu tempo presente, cria um ângulo do qual seja possível expressar-se.
Assim, a literatura contemporânea não é, necessariamente, a que representa a atualidade, exceto “por uma inadequação, uma estranheza histórica que a faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente” (Schollhammer, p.10). Mas, ser contemporâneo é ter a coragem de encontrar o seu caminho na escuridão e, a partir daí, reconhecer e comprometer-se com o inesperado.
Ao contrário de Schollhammer, Fábio Lucas pensa que “a literatura moderna, privilegiando a originalidade e o discurso autônomo, tende sempre para o lado da desordem, da diferença, do excluído, da vanguarda.” (Lucas, p.84) Para ele, essa nova literatura não é bem vinda e “milita ao lado do mal”, pois segue a ordem da tradição. Os escritores deixaram de seguir o modelo da imitação, da universalidade para priorizar as qualidades pessoais dando maior valor às diferenças, ou seja, a sua originalidade.
No entanto, acreditamos que a literatura contemporânea é a que vivemos hoje, do tempo de agora, e não tem uma definição acabada. Entretanto, a contemporaneidade brasileira compreende uma série de características herdadas dos movimentos literários anteriores. Isso nos revela muita coisa, e a principal é que há uma multiplicidade de tendências que irão inovar a nossa poesia. Embora alguns escritores peguem algumas características das escolas literárias anteriores, as semelhanças das poesias atuais se dão mais com o movimento modernista, pois, além de ter sido o movimento antecessor à contemporaneidade, teve o rompimento com a tradição e está em constante mudanças e desenvolvimento.
A literatura brasileira contemporânea atravessa um contexto histórico conturbado, tanto no mundo como dentro do cenário brasileiro, com a política, ditadura e necessidade de manifestações. Por isso, os autores contemporâneos fazem da sua escrita uma mistura de estilos e temas.
Traços Caracterizadores da Atual Poesia Brasileira Contemporânea
A literatura contemporânea atravessa várias gerações e situações históricas e perpassa por todas as escolas literárias anteriores. Por isso, transitam textos dos mais variados temas e formatos, do clássico ao marginal, textos longos e curtos, e essa diversidade agrada diferentes personalidades. Entretanto, destaco que pela urgência da vida atual, muitos dão preferência a ler e produzir textos curtos, que possam ler em poucos minutos, uma vez que não há mais “modelos” estéticos a serem seguidos. Dessa forma, a literatura contemporânea não representa necessariamente a atualidade, a não ser pelas zonas obscuras do presente, mas nos traz uma rica diversidade e liberdade textual.
“Poesia é risco” dizia Augusto de Campos. Falar da produção poética nesse momento é arriscado, pois estamos no “olho do furacão” e as produções não param. De todo modo, arrisco-me a indicar algumas características do cenário da poesia brasileira contemporânea.
Inicialmente, destaca-se uma indiferença por acontecimentos coletivos, seja do Brasil, seja Mundial pelas causas sociais. A partir disso, podemos dividir a poesia atual em duas: a poesia crítica e a poesia de testemunho que vem de encontro com essa tendência. Em segundo lugar, observamos um desinteresse por formas experimentais (visuais, intersígnicas, híbridas), em prol do verso com frases clássicas. Entretanto, nessa contramão, destaca-se algumas obras de Arnaldo Antunes.
Uma terceira característica da produção contemporânea, é o retorno do subjetivismo, do expressionismo, do sentimentalismo. Não como as poesias do Movimento Romântico, mas já incorporadas na sobriedade dos anos 1980 e 1990.
Dando seguimento, parece que os que praticam a poesia atual são professores, tradutores, críticos, editores e universitários. “Não há mais lugar para amadores”.
Dentro desse panorama, temos a revolução da disseminação da circulação dessas poesias na internet, transformando a relação entre autor (produção), obra (distribuição) e leitor (recepção), como a poesia que circula mundo afora em plataformas de interação como facebooks, instagram, blogs, twitter, etc, pedindo ao escritor que escreva de modo urgente também, que sua escrita acompanhe a velocidade de seu tempo (o atual). A vida anda veloz, cada vez menos as pessoas têm tempo para ler um livro extenso, Então, a literatura se viu “obrigada” a acompanhar essa velocidade, essa urgência.
O escritor Marcelino Freire comentou em seu livro mais recente sobre essa urgência:
“De fato, escrevo curto e, sobretudo, grosso. Escrevo com urgência. Escrevo para me vingar. E esta vingança tem pressa. Não tenho tempo para nhenhenhéns. Quero logo dizer o que quero e ir embora.” (Freire, 2008)
Essa escrita que “urge”, que tem pressa tem como objetivo o desejo de chegar a alcançar uma determinada realidade, não é apenas um alvoroço temporal. É difícil agrupar escritores contemporâneos porque ainda testemunhamos essas tendências no nosso dia a dia.
No meio desse prato de salada cultural, estão os críticos julgando as produções, julgando tudo aquilo que pode, do tema ao estilo. Entre as perspectivas possíveis para se julgar o valor de um poema, pode-se privilegiar uma característica que se mantém: um aspecto formal na estrutura (sonoro, mórfico, sintático), sabendo que essas partes não se separam dos modos de funcionamento do poema, que são: a linguagem, os cortes dos versos, seus traços ideológicos, se possui uma forma fixa ou não e o porquê, seu lugar no livro, o lugar do livro na obra do autor e o lugar do autor na literatura de seu tempo.
Em linhas gerais, o valor de uma poesia ultrapassa o campo do valor estético e vai ao encontro do gosto de cada público:
“o leitor se lança à maior aventura: vai do império do valor ao prazer do gosto, jamais isento e desinteressado. É quando a receita ganha um toque pessoal e se põe aquela pitada a mais daquilo e disso e se deixa a iguaria no forno mais tempo do que manda a fórmula.” (Salgueiro, 2018)
Segundo Fábio Lucas (2022), existem processos que não podem ser decididos e conduzidos às pressa. E há atividades do homem que não se combinam com a velocidade, e esse é o caso da produção literária, cujo propósito tem sido o de “dar sentido à vida”. Então a literatura é para ser sentida e não pode ser apressada, urgente e veloz. De acordo com ele, para que se sobreviva a qualidade literária, as produções, circulação e consumos das obras literárias tendem a resistir à essa urgência.
A Literatura e Novas Tecnologias
Neste novo século surgiram inúmeras questões em relação às transformações culturais e sociais, e nelas estamos inseridos. Principalmente, questões importantes para se entender o que significa ler e fazer literatura neste século inovador.
O surgimento das novas tecnologias digitais provocou uma nova postura do homem diante do mundo digitalizado. Assistimos, todos os dias, à transformação tecnológica e a internet é o elemento principal dessa transformação, assim como a máquina de escrever foi um elemento transformador no século XIX, facilitando a escrita, e sobretudo, a leitura de originais os quais eram escritos à mão.
A internet é acima de tudo um espaço para divulgar ideias e conhecimento; nesse espaço denominado ciberespaço a literatura encontrou também um lugar para sua propagação. Sendo assim, a Literatura atual não é mais um como campo fechado, mas sim, agora é vista como um campo aberto, expandido, pois os contatos se dão através das mídias e ferramentas diversas que adaptam os textos tanto ao campo material (texto impresso) quanto para o visual e ou digital (mídias sociais e ebook).
Nesse novo contexto, as principais transformações são em respeito à liberdade propiciada pelo ciberespaço, para produzir, publicar e circular textos: se lê, produz e faz circular através de recursos diversos, onde a estilística da literatura se adequa e possibilita impactar os leitores em seus próprios ambientes.
Vivemos hoje na era da eletrônica, isso é certo, “o homem contemporâneo experimenta simultaneamente numerosas forças de comunicação, quase sempre através de mais de um dos seus sentidos.” (Lucas, p.), ou seja, com o advento da informática e a utilização do espaço virtual a literatura viabiliza-se através de um sistema semiótico (ou intersemiótico) perpassando por vários níveis sígnicos (quer sejam eles, verbais, sonoros, visuais, etc) e esse espaço virtual possibilita usar os sentidos da visão, audição e ou fala ao mesmo tempo.
Como resultado desse advento da literatura, nos deparamos com um amplo painel de modalidades textuais que incitam não só o leitor, mas também, o artista, pois é um instrumento para agilizar a produção e circulação desses textos. Tendo em vista esse novo instrumento para se produzir e ler textos, o mercado tradicional dos livros sofreu transformações do campo literário devido ao surgimento das tecnologias digitais:
“Na sociedade do espetáculo, aquecida pelos meios de comunicação de massa, o livro deixou de ser fonte do saber: reduziu-se à ligeireza de uma notícia. No máximo poderá desfrutar do brilho de um momento, com a velocidade de uma estrela cadente.” (Lucas, 2022)
Então, será que a literatura só utilizar o ciberespaço estaria extinguindo o uso do livro? Acredita-se que, embora o uso do livro seja mais delimitado, esse é apenas mais um meio para a disseminação da palavra e da transformação desta. É como o exemplo da máquina de escrever, quando criada ajudou a transpor a escrita manual para a mecânica, e atualmente, experimentamos a visualização da escrita e seguimos para a construção no espaço virtual.
De fato, com tantas transformações tecnológicas, muitos podem pensar no fim do livro ou até mesmo da literatura. Contudo, isso é um equívoco e está distante de acontecer. Entretanto, podemos afirmar que um futuro da literatura está no espaço virtual, onde há inúmeras possibilidades para uma literatura digital.
A Prática Discursiva de Michel Foucault
De acordo com Foucault:
O que se chama “prática discursiva” pode ser agora precisado. Não podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa. (Foucault, 2012)
Ou seja, a prática discursiva não está dentro do sujeito, nem são os resultados das particularidades do mesmo. Se pudermos incluir o sujeito nessa explicação, então a prática discursiva é o que fundamenta o ser do sujeito, como ele age e como ele se posiciona no mundo discursivo. Na realidade, uma prática discursiva é um conjunto de regras anônimas demarcadas por fatores materiais que determinam o uso das funções da fala.
Por outro lado, a função de um enunciado é, portanto, um enunciado colocado em um contexto material e definido com base na realidade no momento do enunciado, pois “o texto não é tratado como um documento da realidade. Nós o monumentalizamos para a identificação de um funcionamento que lhe é próprio.” (Gomes, 2020, p.19) A função da enunciação é cruzar possibilidades materiais em estruturas linguísticas, econômicas, sociais, políticas e institucionais que limitam as possibilidades reais dessa própria existência.
Desta forma, a prática discursiva é o conjunto de regras anônimas que permitem a produção, a reprodução e a repetição dos enunciados numa realidade concreta. Ela não é produto da realidade social, institucional, econômica, política, etc. Ela tem sua própria realidade.
Portanto, a prática discursiva não é produto daquilo que os próprios sujeitos falam e ou escrevem sobre si mesmo e sua participação no mundo, não é sua opinião ou ideia ou, ainda, um pensamento de consciência individual, mas trata-se de uma realidade que possibilita o dizer sobre si, que pode vir a ser o dizer sobre muitos outros também.
Descrição e Traços Caracterizadores das poesias de Maria Avila, Ryane Leão e Tatiana Nascimento
Inicialmente destaca-se na literatura, sobretudo na poesia, um certo desinteresse por acontecimentos coletivos, seja do Brasil seja no mundo, mas sim, uma forte presença de subjetivismo.
Temos na poesia contemporânea uma intensa presença de sentimentalismo, expressões pessoais, ou seja, uma poesia subjetiva. Como as poesias que circulam em facebooks, instagram, blogs fugindo, geralmente, dos versos clássicos e dando lugar a uma poesia mais curta, veloz.
Nos encaminharemos a fim de especular produções literárias que permitiu a abertura para o “ser contemporâneo”: o que eu soube, de Maria Ávila; quantas vezes a minha mãe sentou na beira da cama, de Ryane Leão; e menos é pouco, de Tatiana Nascimento, objeto do qual nos ocuparemos com o objetivo de refletir sobre a produção na era da eletrônica, assentados em uma abordagem da prática discursiva do literário.
O que eu soube – Maria Ávila
nas histórias
que já atravessaram
a minha vida
casos de violência
estupro
e feminicídio
muitas outras
naquelas que chegaram
até a minha mãe
outras tantas
que a minha avó
presenciou
incontáveis
testemunhas
pela minha bisavó
quando o fio
da memória dessas mulheres
se cruza com a linha
do meu pensamento
Sinto o arrepio do medo
percorrer todos os caminhos
do meu corpo
e desejo
com toda força que consigo
para ser diferente
quando a minha filha, a minha neta
e a neta da minha neta
pisarem nesse mundo.
Nota-se que na forma, o poema apresenta o formato estético moderno: uma única estrofe possuindo vinte e oito versos, curtos, livres e com poucas rimas e irregulares. Alguns deles são compostos por uma só palavra, outros com duas, com três ou mais, possui uma linguagem simples, coloquial e íntima, até mesmo pelo uso das iniciais em minúsculas. Há no texto uma grande sonoridade nos versos com o uso de muitos vocábulos com a consoante “m”, no início e meio destes, como por exemplo: minha, muitas, mãe, memórias, mulheres, feminicídio, testemunhas, pensamento.
O eu-lírico, o qual tem voz feminina, fala sobre histórias que atravessaram sua vida e a vida das suas ancestrais: bisavó, avó e mãe. Ela não conta a história em si, mas menciona sobre as histórias que ela soube, como já sugere o título do texto, como exemplo, casos de violência, estupro e feminicídio que suas antecessoras e ela mesma presenciou e foi testemunha, assim também, como tantas outras mulheres. Ao lembrar desses atravessamentos ela sente o “arrepio do medo” e faz o desejo que o mundo seja diferente para quando sua filha, sua neta e bisneta o habitar.
Pensando nas histórias que atravessam as nossas vidas, sobremodo, a vida das mulheres, como citado no texto, sabemos que esses fatos existem há muito tempo e, infelizmente, continuarão a existir. O sujeito afirma isso quando fala da sua ancestralidade e quando pensa na sua geração futura.
Maria Ávila é escritora, poeta, autora dos livros Frida Aqui Dentro (2023) e Poemas Partidos (2022). Estudiosa da vida e obra da pintora mexicana Frida Kahlo, formada em Serviço Social pela UFBA, Universidade Federal de Salvador, onde a escritora mora. É criadora da página @mariamariapoesia no Instagram, onde divulga seus trabalhos escritos, suas apresentações em saraus, universidades, escolas, etc.
Quantas vezes minha mãe sentou na beira da cama – Ryane Leão
quantas vezes a minha mãe sentou na beira da cama
e me ajudou a retirar os cacos de vidro dos pés
e disse que poucos mereceriam o meu amor
que o mundo me machucaria porque eu tinha nascido
com coração demais
que eu tinha que parar de ser tão boa
ou não me sobraria nada
além dos cacos
que ela arrancava
com cuidado e paciência
plantando flores
no lugar.
O poema é composto, também, por uma única estrofe, possui doze versos, curtos, livres, brancos, praticamente sem rimas, e são irregulares. Os quatros primeiros versos são longos e depois vão ficando mais curtos, como se as forças do eu-lírico fossem diminuindo ao longo do relato. Embora não possua rimas, há uma sonoridade no texto com o uso da consoante “m”: minha mãe, meu amor, mundo me machucaria. E como podemos observar, o texto também possui uma linguagem simples, coloquial, e íntima, até mesmo pelo uso das iniciais em minúsculas.
O eu-lírico conta sobre os cuidados de sua mãe para consigo após alguém ter partido seu coração, ou seja, tenha a magoado. E que ela planta “flores” no lugar dos machucados em seus pés feitos pelos “cacos” de vidro. Temos aqui, um texto metafórico, pois ela compara sua dor com cacos de vidros e um recomeço com plantação de flores.
Ryane Leão é professora, poeta, e ativista em defesa dos direitos das mulheres negras. Em 2008, começou a divulgar seus textos em “lambe-lambes” que espalhava pela cidade, e também no seu perfil @ondejazzmeucoracao no Instagram, além de participar de saraus e slams. Autora dos livros Tudo Nela Brilha e Queima (2017), Jamais peço desculpas por me derramar (2019), este são poemas autobiográficos que mostram toda sua sensibilidade.
Menos é pouco (conselhos para a minha filha) – Tatiana Nascimento
pode ser que na moda
na música no texto
y em quase todo
o resto
menos seja mesmo
mais
mas no contexto
do amor y do afeto,
da paixão & até do sexo
menos
quase sempre
é pouco. atenção ao
vão abismo entre
o quanto vc
quer
y o quanto disso te dão;
se é vau de andar
à pé ou oco em amplidão
em matéria de arte
cinema aforismo
é, acho que t
anto faz,
menos pode ser mais
mas em caso de amor
não se engane nem
se encolha, minha
filha, menos
é sempre pouco.
Já esse poema de Tatiana Nascimento, é composto por sete estrofes e dois versos sozinhos, os versos são curtos, irregulares, mas a maioria deles possui rimas. Esse texto possui um diferencial, que não há nos anteriores: ele é escrito um pouco do jeitinho “internetês” escrito como numa mensagem eletrônica. Palavras escritas abreviadas “vc”, a qual designa o pronome “você”, “y” no lugar do “e”, e ainda, podemos observar que na sexta estrofe, a poeta corta o vocábulo “tanto” separando a consoante inicial da vogal.
Esse texto, também trata-se de uma história passada de geração, no entanto, temos uma mãe aconselhando sua filha. O próprio eu-lírico afirma isso no título do texto, onde coloca entre parênteses a frase “conselhos para a minha filha”.
Então, o sujeito afirma no texto que menos é pouco, a não ser que na música, na moda, no texto, realmente, menos pode ser mais, mas em se tratando de amor, carinho, afeto e até leo no sexo, menos é pouco. Ela diz para a filha não confundir e não aceitar menos do que merece, nem se encolher para aceitar o pouco que lhe derem. Conselhos os quais todas as mães dão para suas filhas.
Se anteriormente, na forma, era preferível estrofes e versos fixos, a estrutura clássica (soneto), com a nova tendência, a poesia passa a ser mais livre. Observemos que os três poemas descritos têm muito em comum: versos livres e brancos, com e sem rimas, irregulares, ou curtos demais. Linguagem coloquial, que é bastante utilizada na literatura contemporânea e em poesias descritivas e narradas. Outro ponto em comum é que elas não são cheias de informações, mas registram histórias que acontecem com recorrência. São poesias individuais e muito subjetivas (sobre si e seu círculo parental). Há também uma ausência de figuras de linguagem, exceto o texto de Ryane Leão (“retirar os cacos de vidro dos pés”, por exemplo). Embora os textos sejam curtos, não são “esqueletos verbais sem alma e sem sentimento”, pelo contrário, as vozes líricas dos três textos são vozes femininas e registram/descrevem momentos que, geralmente, ocorrem na vida das mulheres e que deixam uma marca (boa ou ruim).
Tatiana Nascimento, é mãe, poeta, slammer, cantora e compositora brasileira negra, que escreve, investiga e publica livros de autoras negras e LGBT. É co-fundadora da Padê Editora. É tradutora por formação e formada em Letras pela UnB (Universidade de Brasília) e fez doutorado em Estudos da Tradução na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Em seu Instagram (@tatiananascivento), ela compartilha os seus ideais através de poesias com versos profundos e marcantes.
Formação Enunciativa e Descrição das Posições de Sujeitos
“O texto não é tratado como um documento da realidade. Nós o monumentalizamos para a identificação de um funcionamento que lhe é próprio” (Gomes, 2020, p.19). Então, as obras enquanto enunciado não descrevem a realidade em si, mas expõem histórias que identificamos no dia a dia. Casos de violência contra a mulher, estupro, feminicídio, conselhos maternos, coração partido, que na verdade, sempre existiram, no entanto, até o momento moderno e atual não seriam possíveis escrever, principalmente, por mulheres, ou seja, na instância do acontecimento. Pois, cada período histórico possui um “modo de ser” na literatura. E o poeta tem um lugar de fala essencial no mundo.
Segundo Gomes (2020) Todo cenário histórico edifica/define/produz espaços legítimos de produção de conhecimento, a maior delimitação ocorre dentro da prática discursiva. Ao mesmo tempo que define esses espaços, descreve o status daqueles que podem se posicionar para falar, pois “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (Foucault, 2002, p.37). Então, as produções discursivas que remetem ao período de emergência das poesias apresentadas acima (o atual), estão ligados ao ciberespaço, principalmente, ao instagram, onde qualquer pessoa que tenha uma conta nessa rede de comunicação pode ter acesso, acaba tornando-se até mais acessível do que os próprios livros sejam eles digitais ou impressos.
Se inicialmente, produzir literatura era restrito aos escritores que hoje são consagrados, cânones, com o passar dos séculos, a chegada do movimento moderno até os tempos atuais, na geração “dois x”, foi ampliado os espaços de circulação, difusão dos saberes e produção, bem como a comunidade de leitores. Logo, hoje, qualquer pessoa que queira escrever e expor, possuindo internet pode produzir literatura, sobretudo, a poesia. A era digital facilitou a entrada de novos escritores, a produção e a veiculação dessas obras, e é esse momento que permite com que Maria Ávila, Ryane Leão e Tatiana Nascimento façam essas construções poéticas e as disseminem nas suas redes de comunicação.
Analisando o processo de formação dos enunciados descritos nas poesias, focalizando o status dos sujeitos e as condições de produção, definimos que suas formas de produção são subjetivas e assumem a configuração da literatura no período em foco.
De acordo com a perspectiva de metodologia proposta por Foucault na sua Arqueologia, a descrição das várias modalidades de enunciados não deve se resumir apenas à síntese ou à formação unificante de um sujeito. O regime de enunciações é definido pela dispersão e descontinuidade que o sujeito tem em relação a si mesmo. Dispersão que acontece nos diversos status, nos variados lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando expõe um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala (Foucault, 2000, p.61) esses aspectos são importantes por dar conta da diversidade de modalidades que podem surgir da relação entre o sujeito e o lugar que ele obtém seu discurso.
Se analisarmos a rede de relações que é possível estabelecer entre o status do sujeito (escritoras, poetas, autoras, criadoras de conteúdo para as mídias sociais), os lugares de onde falam, de onde obtêm os discursos (universidades, escolas, saraus, integram, facebook, etc) uma variedade de posições de sujeito podem ser delineadas. Então, a partir dos poemas acima analisados, indicam que esses sujeitos (a filha; a neta; e bisneta, a filha, e a mãe) podem ter diversas posições a serem consideradas: o sujeito-aprendiz; o sujeito que ouve; o sujeito que leva seus saberes para outros; o sujeito criador; o sujeito que aconselha, o sujeito que sonha. O sujeito que escreve; o sujeito autor; o sujeito que seleciona o conteúdo; o sujeito design… Não percebemos, mas essas posições encontram-se intrinsecamente relacionadas com as atividades de quem escreve e divulga nas mídias sociais.
Desse modo, não deve-se esperar que a poesia atual brasileira seja homogênea, muito pelo contrário, temos uma diversidade gigantesca, um prato de salada rico e diversificado, que só tende a variar e crescer cada vez mais.
Considerações Finais
É inegável que as novas tecnologias, especialmente as suportadas pela Internet, envolvem a disseminação, edição, arquivamento, consulta, análise, leitura e transformação para discurso interativo e, ainda, comercialização de obras literárias, mesmo aquelas que não foram criadas nesse momento, ou até mesmo antes da internet. Destacamos também as bibliotecas virtuais, onde as obras que, primeiro, foram impressas encontram espaço nesse mundo digital.
As novas tecnologias tornam possível a literatura puramente digital. No entanto, algumas obras literárias, embora publicadas apenas na Internet, não são interativas e podem ser publicadas apenas na Internet, outras são interativas a ponto de ser publicadas até em tecido. Algumas pessoas precisam do hipertexto da realidade virtual para sobreviver, o que não seria possível sem a tecnologia digital.
Compreender a literatura que não é de origem digital e as suas possibilidades através dos meios digitais significa uma melhoria qualitativa, mas também, devemos considerar que existem textos de qualidade superior e inferior em todos os espaços, seja ele o digital ou não.
Portanto, a linguagem poética é sim própria para os meios de comunicação e para todo espaço que o poste suas obras queiram estar. A nossa literatura atual (a literatura brasileira contemporânea) cede aos ditames da indústria cultural, no entanto, o fato da era da eletrônica ter afetado a literatura, não significa que tenha sido só negativamente, existem fatores positivos também, como por exemplo, a circulação, a oportunidade que muitos escritores têm de serem lidos, etc. Toda a urgência instaurada tem um motivo, como todo movimento literário teve uma marca, o contemporâneo não poderia ser diferente. É essa urgência que nos move faz parte da nova geração.
Referências
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
LUCAS, Fábio. Reflexões sobre a literatura da era eletrônica. Revista Novos Rumos, (27), 2022. Disponível em: https://doi.org/10.36311/0102-5864.13.v0n27.1961. Último acesso em: 08 de nov. de 2023.
GOMES, Rosely Costa Silva. Arquegenealogia do literário: A trama enunciativa da Divina Comédia. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2020.
SALGUEIRO, Wilberth Claython Ferreira. Poesia Brasileira: violência e testemunho, humor e resistência. [recurso eletrônico] | Wilberth Salgueiro. – Dados eletrônicos. Vitória: EDUFES, 2018.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
…
Roberta Mota mora na cidade de Jequié, no interior da Bahia. Estuda Letras na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Desde à infância é apaixonada pela escrita, e principalmente por poesia. Publicou alguns de seus poemas em antologias diversas, como por exemplo: “Poesia Livre 2020”, “Versos delas para elas”, “Quarentena Poética”, “O amor em poesias”, entre outras. E é autora do livro “Nas linhas do meu coração”, seu primeiro livro de poesias.