Ana Elisa Granziera é escritora, ilustradora e aquarelista paulistana, nascida em 1979, e residente no Canadá desde 2017. É autora do livro Brutta Figura (Chiado Books – 2020), do blog La Cucinetta desde 2006, e da newsletter Boletos & Borboletas desde 2021. Ilustrou livros infantis e didáticos no Brasil, expôs suas aquarelas em Toronto, e hoje é professora de arte em Ottawa, onde mora com o marido e dois filhos, personagens de suas crônicas e cartuns. Corre maratonas no meio do mato, e escreve poemas quando tem insônia. Recentemente, lançou a obra “Manual das decepções de uma vida comum”, pela Mocho Edições.
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O testamento
Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., advogado há trinta e oito anos, amigo pessoal da falecida, entrou em sua sala austera e escura para encontrar sete ex-maridos e uma mulher mais jovem, cujo olhar deixava escapar confusão no meio de sobrancelhas prepotentes. Ela vestia um conjuntinho de saia e blazer de linho rosa-bebê, com as marcas de todas as vezes que sentou e levantou no caminho até ali, e pelo menos seis peças de joalheria completamente inapropriadas para a ocasião. Os sete ex-maridos, por sua vez, vinham em tamanhos, posturas, cores e texturas tão diversas quanto os insetos de uma floresta tropical; ainda que todos tivessem mais ou menos a mesma idade e exatamente o dobro da idade da mulher. Ocupavam todas as cadeiras e banquinhos disponíveis naquele escritório de advocacia, à exceção da poltrona giratória de couro caramelo que aguardava o traseiro de Dr. Terêncio.
Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., que passara, ao longo dos anos, a apreciar a tensão silenciosa que precedia toda leitura de testamento, ajeitou-se confortavelmente em seu assento, coçou a garganta com um pigarrear cartunesco, e inspirou e expirou bem devagar, enquanto olhava para o papel em sua mão. Eram tantos pés batendo nervosos e dedos tamborilando ansiosos, que poderiam bem fazer tremer uma ponte pênsil.
Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr. apresentou-se e agradeceu a presença de todos ali. Em especial, a do ex-marido número dois, que pegara um voo de última hora de Budapeste, e a da mulher coberta de joias, cuja aparência Dr. Terêncio tomou como evidência do esforço que ela fizera para estar ali.
Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr. leu em voz alta, em um tom de suma importância, escandindo sílabas e pronunciando precisamente todas as consoantes, o conteúdo do documento. A falecida, fotógrafa de profissão, deixara uma lista precisa de todos os seus bens — desde o apartamento de luxo no Pacaembu até o conteúdo das caixinhas que ela guardava nas gavetas da escrivaninha em seu estúdio na Vila Nova Conceição. Suas posses mais importantes, aquelas que ela não havia perdido nos sucessivos divórcios, foram deixadas, como era esperado, para seus quatro filhos, frutos do segundo, terceiro e sexto casamentos. Mas havia oito itens específicos, guardados por muito tempo, e que, na ocasião de sua morte, deveriam ser entregues às oito pessoas sentadas na sala de Dr. Terêncio.
Assim leu Dr. Terêncio dos Santos Almeida, segundo instruções de sua cliente e amiga, o papel datilografado na máquina de escrever eletrônica, com a fala da falecida.
Para Rodolfo Esperanto de Assis, ela deixou todas as fotografias que este arruinara com seu mau humor e o reflexo de sua cabeça calva, que parecia um fogo fátuo no meio de todos os registros daquele breve casamento.
A Ermelindo Josefa, deixou os sessenta e dois álbuns de fotos das crianças que ele nunca ajudou a criar, assim como os dezoito engradados repletos de portfólios escolares semestrais em formato A1, que os professores tanto gostavam de mandar para a casa das mães, com recadinhos passivo-agressivos estimulando imensa culpa caso a possibilidade de jogar aquela tralha fora passasse pela mente materna.
Para Vitor Carvalho, deixou uma cópia das fotos que ela secretamente tirara todas as vezes que ele se encontrou com a esposa de seu sócio. Dentro do envelope pardo que continha aquelas fotos terrivelmente pessoais, havia um segundo envelope pequeno, com uma Polaroid da reação do sócio quando recebeu as originais da mão de Dr. Terêncio ainda naquela manhã.
Para Dr. Ubaldo de Almeida Jr. (nenhuma relação com Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., sendo o primeiro um respeitadíssimo Doutor em Psiquiatria de um hospital particular de primeira linha em São Paulo), ela deixou os direitos patrimoniais da fotografia em tamanho natural que ela concordara em leiloar post-mortem a uma galeria em Nova York. A lindíssima fotografia em preto e branco mostrava Ubaldo em seu momento sensual mais íntimo, vestindo uma fralda geriátrica, e sugando alegremente uma chupeta em forma de ursinho. A imagem mostrava Ubaldo sentado em um cadeirão tamanho adulto, secretamente construído por ele mesmo na edícula da casa deles no Morumbi, onde também mantinha uma geladeira estocada com papinhas da Nestlé.
Para Rodolfo Pereira da Silva (o quinto de uma série de Rodolfos que passaram pela vida romântica da falecida desde seus nove anos, quando se apaixonou inocentemente pelo Rodolfo da terceira série B), deixou uma caixa com todas as cópias e os negativos da fotografia mais premiada e valiosa de sua carreira. Em um ato de amor enquanto foram casados, ela o presenteara, em um aniversário, com os direitos daquela foto, que mostrava os dois em uma banheira cheia de espuma, estampando uma felicidade que durou tanto quanto as bolhas com perfume de lavanda. A caixa, aberta, revelava uma série de papéis fotográficos picados, rasgados e picotados em pedacinhos minúsculos e um negativo queimado com um isqueiro, não até desaparecer, mas apenas o suficiente para arruiná-lo para sempre.
A José Weissman, vulgo Sapo, ela deixou um potinho de vidro com todas as cabeças dele que ela recortara das fotografias dos álbuns de casamento, férias, festas de família e também dos álbuns de infância dele. Desde o divórcio, a cabeça do ex-marido nas fotos havia sido substituída por adesivos juvenis de caralhinhos voadores. Perto do dia de sua morte, ela entendera que o divórcio havia sido culpa dos dois, não apenas de José Weissman, e considerava a devolução das cabecinhas um poético pedido de desculpas.
A Fernando Alfonso Bezerra, deixou a foto do cu que ele nunca comeu.
Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., então, voltou-se para a mulher, que se encolhia a cada entrega, imaginando que presente horrível a morta vingativa teria deixado para ela, que não era ex-marido de ninguém, mas mulher do ex-marido da falecida.
Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr. colocou no colo da jovem madame uma caixa de presente com laço de fita, que pesou sobre suas pernas torneadas pelo pilates e as sessões de cross-fit às terças-feiras. É uma cabeça, ela pensou. É certamente uma cabeça. Ou outra parte do corpo. Ou algo horripilante. Uma foto horripilante.
Ela puxou a ponta da fita para desfazer o laço, que despencou, acetinado, pelas laterais de suas panturrilhas. Com cuidado para não descascar o esmalte das unhas, abriu a tampa.
Para Charlene Magalhães de Arruda, deixou uma garrafa do espumante mais caro de sua adega vintage e duas fotografias coloridas, 10×15, em papel brilhante. A primeira mostrava o marido da mulher viva e ex-marido da mulher morta: Rodolfo Magalhães de Arruda, o último Rodolfo da falecida, o que foi seu Rodolfo por mais tempo, até o fatídico dia em que conheceu Charlene no consultório do dentista. Na fotografia, Rodolfo Magalhães de Arruda apertava a mão do homem que mataria a amiga fotógrafa de Dr. Terêncio. Ao lado de Rodolfo, de braços dados como se passeando no parque, Charlene Magalhães de Arruda sorria, vestindo um terninho de linho azul-bebê e olhando fascinada para a aliança de diamantes que Rodolfo lhe dera, exatamente igual à que sua esposa usaria no instante em que morresse. A segunda fotografia, tirada dias antes do assassinato da famosa fotógrafa, mostrava Rodolfo Magalhães de Arruda apertando a mão do mesmo homem, no mesmo estacionamento, de braços dados com a mulher que substituiria Charlene.