Terezinha Malaquias (@terezinhamalaquias) vive em Freiburg, na Alemanha, desde 2008. É artista da palavra. Terezinha escreve, compõe, trabalha com vídeo e com performance, transitando com leveza entre as mais diferentes linguagens da arte, explorando temas como: ancestralidade, memória, afeto, silêncio, contemplação, racismo, mulheres e violência. É autora de oito livros, escrevendo tanto para o público infantil quanto para adultos. Trabalha em uma das galerias do centro cultural E-werk Freiburg. Mantém o canal do YouTube – TereMalaquias – onde divulga suas experimentações artísticas
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Banzo
Acordei hoje bem mais cedo do que eu gostaria,
perdi o sono em algum lugar e não consegui encontrá-
-lo no sofá da sala, onde me sentei para rezar e meditar.
Esse é o meu ritual diário há muitos anos, mas princi-
palmente na pandemia. Depois fiz abdominais e dan-
cei um pouco, sem música, queria mesmo era acordar
o meu corpo para o novo dia que amanheceu em mim.
Fui para a cozinha e fiz bolachinhas de polvilho
inspiradas na receita da minha mãe, que aprendeu com
a minha avó. Mamãe não me ensinou porque eu não quis
aprender a fazê-las. Até então, nunca tinha me interes-
sado, porque prefiro comer salgados a doces. Contudo,
nesse ano atípico, eu fiz essa receita – que é passada há
pelo menos três gerações de mulheres na minha família
materna – pela segunda vez. Coloquei as bolachinhas
no forno para assá-las e rapidamente o bom cheiro se es-
palhou pela casa toda, vindo da cozinha. O cheiro foi se
intensificando e as lembranças começaram a bailar na
minha cabeça e nos meus sentidos, com imagens lindas.
Parecia até mesmo um filme.
Vi-me dançando outra vez ao som da música das
minhas memórias: de criança, adolescente e mulher
adulta. Todas elas eram vivas e muito reais, traziam a
lembrança de comida feita em casa, com toda a família
reunida, aqueles momentos em que as crianças corriam,
brincando, pulando e gritando pela casa, fazendo bagun-
ça e enchendo-a de uma alegre energia. Era um cheiro
de pertencimento, de lugar, de ser, de família. Cheiro
ancestral que vinha de mulheres que sempre cozinharam
para alimentar suas crias e seus maridos. Cheiro de gente
feliz, que trazia no corpo e na alma o verbo esperançar.
Cheiro de colo, cafuné e dengo, misturado a vários ou-
tros de comida; cheiro da minha gente.
Assei as bolachinhas e coloquei-as sobre a mesa da
varanda para esfriar mais rápido. Depois, iria guardá-las
na caixinha dos doces e ir comendo aos poucos, para du-
rarem mais tempo. Sorri para mim mesma quando pen-
sei na palavra ‘guloseimas’, mas rapidamente respondi
para o meu pensamento: “não, não são!”. As bolachi-
nhas feitas por mim nessa manhã sem sol, no inverno
alemão, foram a maneira que eu encontrei para dialogar
com a saudade e adoçar o meu coração.
Ao final do dia, lá pelas 16h, sentei-me sozinha
com meus pensamentos, novamente no sofá da sala,
para o meu café da tarde. Sobre a mesa baixa, uma xí-
cara com café sem açúcar e leite de aveia e um vaso
de cerâmica bege, mesclando claro e escuro com rosas
coloridas. E, no prato, três bolachinhas. Três mulheres
negras. A avó, a mãe e a filha.