(um conto em 4 atos)
ATO 1
Passou a viagem toda tentando manter o sorriso pregado no rosto como de costume.
Fingir é uma de suas melhores habilidades.
Hoje não.
Tantos passageiros recusaram a sobremesa, que teve ódio da companhia aérea.
Para que oferecer algo que ninguém come?
O cheiro do pudim feito com amido de milho embrulhava seu estômago.
Precisou correr para sentar-se, com medo de vomitar no corredor.
Um senhor pouco educado chamou-a pelo botão umas quatro vezes. No meio da turbulência, ele queria outro copo de água.
Depois, uma criança abriu o berreiro por conta das minúsculas peças de montar que deixou cair no chão.
Para completar a sequência de situações insuportáveis, lá estava ele: o maldito comissário de bordo com suas piadas machistas. Gostoso na cama, nojento na vida.
Depois de treze longas horas de voo, em que se perguntou a cada minuto por que razão decidiu trepar com aquele infeliz do seu colega de trabalho, finalmente estava em terra para uma semana de seu merecido descanso.
Assim que saiu do avião com sua pequena mala de mão, dirigiu-se ao banheiro do aeroporto.
ATO 2
Ela tira o casaco e desabotoa a camisa branca.
Saudade da mãe passando sua roupa. Ela fecha os olhos por um instante e é capaz de sentir o cheiro de alecrim daquela água de passar. A memória invade suas narinas, mas no segundo seguinte, seu púbis rijo se contrai.
Sua em bicas e a vagina lateja como se fosse explodir.
Arranca a calcinha e se sustenta sobre a força das panturrilhas e das coxas.
Bem que os agachamentos dos últimos dois anos de academia nas folgas servem para alguma coisa.
Não se arrepende quando vê o sangue lavando a louça sanitária branca.
Ninguém imagina que atrás da porta azul de fechadura que mostra ocupado está uma moça a parir.
Antes do tempo? No tempo certo? Certo para quem?
Nem quatro meses e o menino já está dando trabalho.
Não precisa de tanta força. Doeu tanto para chegar no corpo, que nem acredita que para sair é como um sabonete escorregando.
Boiando sobre a água de reúso, agora em tom verde escuro, o bebê acena. As minúsculas mãos parecem pedir socorro, ou quem sabe se despedem.
Ela se comove.
Parecendo um filhote de judiação, ele agoniza.
Ela até pensou no nome. Refletiu em seguir adiante com a barriga e com a vida, num ir e vir pelas nuvens e sem lugar, mas desistiu quando tomou os comprimidos.
Agora imagina: retornar para o interior e morar de novo na casa amarela de muros caiados de branco, carregando um rebento que veio no grito do não.
E todos dirão sem pudor: ele tem a cara do pai!
Quanto menos se apegar melhor.
ATO 3
Enquanto se limpa com pedaços minúsculos de papel higiênico que saem do dispenser, martela na sua cabeça que uma mãe sempre acolhe o filho que chega e que volta.
Não aguenta mais os sintomas do jet lag. Seria bom dormir na hora certa, sem mudar os relógios todos os dias. Crianças gostam de rotina.
Quem sabe até vinga o sobrenome paterno no documento. Ele tem mesmo a cara do pai, que vive espezinhando e dizendo que ela não presta.
Enfia as duas mãos na água da privada e pega o menino.
É capaz de ouvir o coração batendo forte entre seus dedos.
A tesoura está na bolsa esperando para cortar o cordão, mas ele é tão pequeno, que tem medo que escorra de vez, como a felicidade de quando era pequena e acreditava que o mundo era bom.
Talvez dê tempo.
Quer devolvê-lo para dentro de si.
Não sabe se é culpa, amor ou a certeza de que a morte é a solidão em vida.
ATO 4
Ser mulher pode ter contornos imprevisíveis.
Talvez não sobrem contornos, só uma imagem borrada.
Daniela Bonafé é escritora, artista e professora. Paulistana, mãe e feminista. Autora de 8 livros, é apaixonada por poesia e escreve desde os 12 anos. Vem se aventurando na prosa. Possui textos publicados em diversas revistas literárias e antologias. É membra do Coletivo Escreviventes e do Mulherio das Letras SP. Apresentadora do programa Rosas Literárias no canal Iaras e Pagus e Podcaster do Jujubas e Pitocos no Spotify.