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1964. Passava das 6 horas daquela gelada manhã de maio quando ele chegou apressado. Desceu de sua bicicleta Göricke comprada de segunda mão, empurrou-a pelo estreito e úmido corredor, atravancado por latas velhas com flores plantadas e, finalmente, chegou à sua casa.

Eram dois cômodos, um de alvenaria e outro de madeirite, construídos aos fundos da casa de seu pai, o nonno. Encostou a bicicleta no puxadinho, improvisado para cobrir a “lavanderia”, onde ficava a vasca de lavar roupas e, na sequência, um quintalzinho a céu aberto com o varal de arame, cheio de fraldinhas de algodão brancas como a neve.

Com a mesma pressa com que venceu um quilômetro e meio, de bicicleta, entre a tecelagem onde trabalhava e o rancho em que morava, atravessou a minúscula cozinha onde ela passava um café ralo no coador de pano e seguiu em direção ao cômodo de alvenaria, o quarto.

– Não vá pegar a menina agora! Você está todo sujo…

Ele fez que nem ouviu. Foi para o berço de madeira antigo e encontrou a garotinha: pele bem branca e cabelos castanhos escuros, se mexendo sem parar para se livrar dos cobertores.

– Olha só… que belezinha! É o bigatinho do papai! Venha com o papai, venha!

A bebê era esperta e ficava incomodada com tantas roupas e cobertores. Queria mesmo era livrar-se de tudo aquilo, então esticava e contraía braços e pernas sem parar. Em meio a essa fúria pueril, dava gemidinhos de esforço e fazia sons com a boca, até que soltou:

– Pá, pá… pá, pai.

– Ela falou! Ela falou PAPAI! – gritou ele exultante de alegria para a mãe, que acordara as 5 da manhã e já havia cuidado da criança, lavado aquela montoeira de fraldas, feito o café e limpado a cozinha.

– Não falou nada. Só está resmungando porque você foi aí acordar a menina. Isso sim!

Já segurando a bebê de 6 meses pelo tórax, com cada mão debaixo de uma das axilas da criança, ele a erguia como se fosse um troféu em dia de premiação. E seguia comemorando:

– Ela falou sim. Falou papai! Eu ouvi… Oh, que coisinha linda!

Fraldas, mamadeiras, papinhas, historinhas, travessuras, mudanças de casa, irmãzinhas… Momentos cristalizados não seguraram o tempo, e chegou o dia de deixar aquele círculo para ingressar na escola. Como sempre fora estimulada a falar, pedir, contar… a garotinha foi logo conversando com as primeiras crianças que encontrou. Eram dois meninos do seu tamanho: um deles era gordinho e alegre, com as bochechas coradas, e o outro, tímido e silencioso.

– Hoje o papai me trouxe de lambreta – contou aos meninos.

– Ah, não. Meu pai não me traz não. Eu venho a pé mesmo, junto com o Agnaldo – disse apontando para o amigo ao lado, um toco de gente, vestido de calças curtas em azul-marinho, camisa branca de tergal, meias três quartos e sapatos pretos.

Ao ouvir PAI em lugar de PAPAI, aquele pequeno cérebro foi tomado por uma dúvida muito séria: “Hummm… Por que será que ele não fala papai? Acho que o certo é pai. Papai deve ser coisa de bebezinho”. Precisava tirar isso a limpo, coisa que faria naquele mesmo dia, logo depois da janta, horário em que o pai dava atenção aos milhões de perguntas da filha, muitas vezes constrangedoras.

– O certo é eu chamar o senhor de pai ou de papai?

– Os dois modos estão corretos. Chame como você quiser. Papai é um jeito mais carinhoso…

– HUM… Então os meninos da escola não são carinhosos, porque eles falam PAI. Papai é coisa de bebezinho, não é? E eu não sou mais um bebezinho. Já tenho 6 anos!

– Fale pai, então – concordou ele um tanto desapontado. 

Pronto. Parecia que a questão estava pacificada, mas mal sabia quantos outros questionamentos aquela palavra ainda lhe traria…

Num outro dia, na escola, ao retornarem todos do recreio, filas formadas por classe, a menina finalmente prestou atenção ao que a madre fazia e dizia, todos os dias, naquele horário. De seu lugar, entre os últimos da fila, pois era mais alta que a maioria das crianças de sua classe, espichou o olhar para aquela figura pequena em vestes cinza com uma coisa comprida e muito estranha na cabeça.

A madre era pequena, mas tinha uma voz poderosa e começou fazendo um sinal com a mão direita, copiado por todas as crianças do pátio:

– Em nome do PAI, do Filho e do Espírito Santo… – em seguida começou a cantar fazendo gestos que toda a criançada já conhecia – PAI nosso que estás no céu… – cantava levantando lentamente os dois braços para o alto – santificado seja o vosso nome… – entoava balançando as mãos como quem invoca algo. 

Desse ponto em diante, a menina deixou de prestar atenção e começou a maquinar um pensamento. E aquelas novas ideias foram tomando conta do seu ser: “Nossa… A madre está cantando para o meu pai? Ele deve ser muito importante pra toda essa criançada obedecer assim”. Não… Mais tarde, nas aulas de religião, ficou sabendo que aquele pai a que a madre se referia era Deus. Sim, o criador de tudo o que existe, o ser supremo, era chamado de PAI.

A gravidade dessa associação de palavras a garotinha só pôde aprender e entender num tempo muito adiante, especialmente depois que descobriu que não existem verdades absolutas. Nem mesmo as que parecem mais sagradas. Todas foram palavras criadas, todas foram, em algum momento e por algum interesse, adotadas e difundidas para que se tornassem “verdades”.

A garotinha acreditou em tudo, a mocinha desacreditou de algumas coisas, a jovem estudou letras, artes, política, economia, ciências, ocultismo e, enfim, duvidou de tudo e desacreditou por completo das verdades inventadas. Até que um dia, nessa busca incessante por entender quem é esse Deus a que chamam de PAI, ouviu uma frase que começou a fazer algum sentido: Deus é amor.

Se bem que a procura se complicou por demais, porque agora era necessário encontrar uma explicação para algo ainda mais inexplicável que o tal Deus PAI. Era preciso encontrar o Deus AMOR. Onde estaria?

E por rezar sempre, rezar nunca, rezar por conveniência, agora ela reza assim:

– Em nome das MÃES, das FILHAS e do melhor que elas puderam aprender e ensinar. Amém!

Rose Ferrari é jornalista e editora. É pós-graduada em Português: Língua e Literatura e MBA em Gestão de Mídias Digitais. É proprietária da Mirarte (www.editoramirarte.com.br), uma editora sob demanda por meio da qual ajuda escritores a realizarem o sonho de publicar seus livros.

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